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Impedimento - Centro Cultural São Paulo CCSP

2014

Em sua mostra para o Centro Cultural São Paulo, Jaime Lauriano nos convoca a re-localizar sujeitos históricos que predicaram dois grandes objetos da memória do Brasil: o regime militar e a copa de 1970. Impedimento é um projeto que tem o artigo como sua pedra de Sísifo. A incursão de Jaime como artista-historiador em arquivos nacionais em São Paulo e Rio de Janeiro não observava um Brasil e sim O Brasil. O artigo indeterminado lograria um Brasil de vários possíveis: um Brasil de fato emancipatório; um que valorizasse a tradição oral do quilombola e do índio; um que não se contentaria em ser receptor de modelos econômicos ou laboratório do capitalismo tardio; quiçá um Brasil antropofágico, e até mesmo – por que não? – um Brasil revolucionário. Um que tivesse um verdadeiro PAC – plano de aceleração do crescimento por se ver como um projeto de governança perfectível (que, claro, se assim fosse, o C, de PAC, capitularia “Consciência”). 

 

Mas O Brasil da pesquisa de Jaime é aquele que teve sua independência decretada por um rei português; aquele em que a própria classe escravocrata aboliu a escravidão; é O Brasil da junta militar que escreveu a lei de anistia para “ambos os lados”. O Brasil que entende que para deixar de ser oprimido, há de se tornar opressor. Os problemas d’O Brasil são problemas da elite: pensados pela elite e feitos para a elite. Ame-o ou deixe-o. É O Brasil fundado pelo PAC - Pedro Álvares Cabral -, o heroi, mirrado e semi-analfabeto, de uma história mantida com esforço por professores do ensino fundamental; O Brasil que, como esboçado e construído pela ditadura e sua campanha de marketing, é O que vai Pra Frente, Salve a Seleção!, construído como sujeito ufanista, com aspirações, angústias e complexos. 

 

Impedimento trata-se do artista-historiador operando nas transversalidades da produção da história como instituição e da instituição do sujeito na história. O paralelismo do qual se propõe a pesquisa de Jaime Lauriano logra um projeto de Brasil em que o sujeito não predica um objeto mas a si mesmo, num eterno retorno à elite reacionária, à economia da monocultura, ao medo de se ver um dia no lugar do índio e não de Hans.

 

 

...

 

Equivoca-se aquele que entende que o futebol tenha predominância no  paralelismo com a ditadura militar traçado na pesquisa de Jaime Lauriano. O futebol se insere em Impedimento como instrumento  na construção do mito da Família Brasileira. E para um governo-sujeito-ufanista, a família é a instituição constitutiva à qual “Ele” deve pertencer. Nas palavras do então presidente Médici sobre a vitória d’O Brasil na copa de 1970, lê-se:

 

Na hora em que a Seleção Nacional de Futebol conquista definitivamente a Copa do Mundo, após memorável campanha, na qual só enfrentou e venceu adversários do mais alto valor, desejo que todos vejam no Presidente da República, um brasileiro igual a todos os brasileiros [...]  “Médici: Identifico-me com a alegria e emoção nas ruas”. O Globo 22 de julho de 1970

 

O mito funciona assim: ele esvazia de significado o signo, ou aquilo que ele pretende mitificar (futebol); ele desvia o sentido literal do signo. Ao mesmo tempo, ele preenche o signo de conteúdo mitificador (futebol como momento de união e igualdade entre todos os brasileiros), construindo um novo sentido, o do mito (A Família Brasileira). O mito é sedutor em sua própria base etimológica: seducere = desviar para o lado. O mito, portanto, é um elemento ao mesmo tempo monolítico e dinâmico. Isto é, ele opera em movimento de desvio constante para que no lugar do signo original seja encaixado o mito. E para que isso aconteça, um leque substancial de informação é usado para que esse movimento de desvio não pare.  

 

Na memória dos militares, o desconhecido General Médici foi escolhido por seu belo porte físico e seu amor ao futebol. A revista Veja na época avaliou que

 

...[D]iante das câmaras de televisão, o estreante Emílio Garrastazu Médici mostrou algumas qualidades. Sua voz impressiona bem: é forte, é solene, excelente para os papéis principais. Sua aparência é grave, descansada e ereta, tem o tamanho e o porte certo para esses papéis (a beleza, aliás, não seria indispensável: em desempenhos semelhantes, o mundo já conheceu figuras esteticamente bizarras). (Veja, 15/10/1969)

 

É nessa imagem que recai o desejo de que “todos vejam no Presidente da República um brasileiro igual a todos os brasileiros” , consolidando sua figura como o Pai da Nação, que convoca perante si todos os seus iguais. Por alguns instantes, uma tabula rasa se impõe na diversidade étnica e na brutal desigualdade social e “todos” passam a formar uma Família Brasileira que partilha do mesmo valor, da mesma cor, que frequenta o mesmo bar para celebrar o amor ao futebol/amor ao regime militar. O futebol é “uma paixão nacional”, um mito que esconde os motivos mais relevantes encontrados nos relatórios da diplomacia estadounidense que justificam a escolha do até então desconhecido General:

 

Médici criticou a paciência de Costa e Silva diante das manifestações anti-governo e, em dezembro de 1968, ele apoiou fortemente a criação do Ato Institucional nº5 (...) Apesar de Médici não se identificar como parte da chamada linha-dura do Exército, sua defesa, no passado, da adoção de medidas políticas restritivas indica que ele será, possivelmente, menos tolerante que Costa e Silva com a oposição radical. (General Records of the Department of State. Central Foreign Policy Files, Brazil, 1967-1969. Political and Defense. Intelligence note, October 8, 1969. “Brazil: General Médici chosen to replace President Costa e Silva”)

 

Tal como o mito, o sujeito que se predica é paralisado (monolítico) e paralisante (dinâmico). A nomeação de um dos presidentes mais sanguinários do período da ditadura militar deu-se em favor à melhor posição econômica e politicamente estratégica dos Estados Unidos. O Fundo Monetário Internacional, peça chave no financiamento às ditaduras militares da América Latina, tinha como seu diretor o próprio desconhecido General Médici, de 1967 a 69. O futebol como instrumento de construção ideológica do mito da Família Brasileira mascara O Brasil como um filho pródigo poliomelítico numa relação complicada com um pai fisicamente ausente, mas psicologicamente pervasivo e idolatrado. Um Brasil impedido.

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