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? - Revista Tatuí

2010

Nem todos que olham o bebê atrás do vidro, nesta

mistura de bebês que os berçários friamente

proporcionam, têm noção de mais este clic! no mundo, um algo a mais do que simplesmente o pequeno cuspe da Natureza que os bebês costumam ser.

 

E quando ele arregala os olhos ainda cinzentos e meio cegos, mesmo que não enxergue quase nada (e nem saiba ainda relacionar-se com o pouco que enxerga), inaugura minimamente mais um olhar que de alguma forma irá tocar para a frente as curiosidades e desconfianças humanas sobre o mundo.

 

Prólogo, in O Performer. Fabio Morais (ed.), 2009

livro-objeto, jato de tinta sobre papel e peça de jogo de xadrez (Rei). Tiragem de 100 exemplares

 

 

Foi-me encomendado um texto crítico sobre a série de performances realizadas pelo Performer em avenidas das cidades de São Paulo e Paris, em sua casa, palcos romanos, museus e galerias comerciais. Suas transcrições e instruções para que possivelmente as performances possam ser refeitas pelo público são apresentadas em forma de texto apenas – sem imagens – em vinil recortado e adesivado em painéis de instituições de arte contemporânea. 

 

Não há imagens, pois o Performer entende que sempre nos valemos da linguagem para enquadrar qualquer noção de mundo que nos é oferecida (ou conquistada). Àquele dito popular que diz que um quadro vale mais do que mil palavras, o Performer, aplicando o vinil no espaço expositivo, diria: Mentira. O quadro (a fotografia, vídeo, escultura, objetos, fenomenologias, documentação de performances, a fruição da obra, o olhar) é texto, ficção.  

 

Frente a essa condição, ofereci a elaboração de um desenho que interpretasse o trabalho desse artista para que o artigo a ser publicado numa revista que trata de artes visuais tivesse pelo menos uma imagem (a fim de salvar o conteúdo da revista, a arte contemporânea, talvez). Mas a coordenadoria editorial dessa publicação, nas pessoas da Clarissa Diniz e a Ana Luisa Lima, respondeu-me:

 

-- Daniela, você não sabe desenhar. Atenha-se ao mundo das letras. Vire-se.

 

Inquieta, propus uma conversa com o Performer no Café Suplicy, nos Jardins, na tentativa de emular o encontro de Christian Boltanski, Bertrand Lavier e Hans Ulrich Obrist no Café Select em Paris em 1993, onde eles elaboraram a proposta curatorial in progress de do it. 

 

Só um parêntese. Essa é uma exposição que, segundo o curador, “observa os efeitos de tradução de um trabalho artístico ao circular em várias permutações de linguagem”, pois lhe interessa, como a Boltanski e a Lavier, a noção de interpretação como princípio artístico.   Hospedada até hoje no site e-flux.com, ela lista instruções individuais elaboradas por inúmeros artistas a serem realizadas pelo leitor-participante em qualquer parte do mundo. Posteriormente, imagens dessas ações podem ser postadas no site, que também conta com a do it TV, onde alguns artistas da exposição passam instruções em vídeo para a realização da ação. Yoko Ono sugere encenarmos um voo, decolando do topo de uma escada; Michelangelo Pistoletto nos instrui a criar uma escultura (uma bola) com os jornais impressos do dia e fazê-la circular empurrando-a pelas ruas de Viena, em seu caso, mas também poderia ser em João Pessoa, por exemplo. Alguns museus da Europa participaram do projeto abrigando as execuções de algumas dessas instruções artísticas. Porém, após o término da duração do programa, o curador demanda que os resultados sejam destruídos a fim de evitar  o fetichismo dos objetos. Ou seja, o projeto só existe no mundo imaterial da web, um mundo subescrito por textos html. Fecha parêntese. 

 

O Performer sugeriu pensarmos em outro lugar porque nos bairros da elite paulistana acontecem muitos imprevistos e ele seria incapaz de me mandar um milhão de mensagens de texto via celular para garantirmos o encontro, pois a escrita desses textos é muito tosca e imediatista. 

 

-- De fato, o são. A meu ver, elas são efetivas somente no caso de querer-se terminar uma relação amorosa que não abriga mais desejo, nem vulnerabilidade ao outro; quando se percebe que se está figurando como acessório para a composição anestesiada do projeto-de-si-mesmo do seu parceiro. Já que ser vulnerável ao outro significa ativar a capacidade do sensível, uma mensagem com um “Ñ te quero +. Fui. Bjs” é uma das mais bem elaboradas formas de comunicação da insensibilidade automatista e neoliberal que se instaurou nas vidas e mentes do indivíduo da passagem do século XX para o XXI. 

 

-- Mas eu sou preto, nega. E acho que hoje em dia,  os sete astros estão alinhados em Escorpião como só no dia da Bomba de Hiroshima. Meus deuses são cabeças de bebês sem toca. Esse momento em que vivemos é um momento com muito medo e sem desejo, ou um desejo calculado a ponto de alimentar a sustentabilidade da economia do desejo. A grande diferença do XX pro XXI é que no XX nós éramos imortais, nos sentíamos imortais: morríamos pela revolução, pela utopia, por paixões, por amor; agora, morremos de medo de morrer, o que é uma forma de imortalidade mais contida, mais botox, mais cocaína. Mas por que forjar desprezo pelos vivos? E fomentar desejos reativos? A vida não é oca como a toca de um bebê sem cabeça. Uma das coisas mais cruéis e ao mesmo tempo mais redentoras que já me foi estabelecida foi a de imaginar o Sísifo – do Camus, e não o do mito – feliz.    

 

PS: minha primeira ideia de oferecer uma imagem à coordenadoria editorial como texto crítico era a de enviar via bluetooth ao computador da revista uma imagem criada com meu celular que ilustrasse o trabalho desse artista literário, porque eu não sei desenhar mesmo. Mas fiquei estranhamente constrangida em fazê-lo, frente à afirmação do Performer de não costumar passar a necessitar daquilo que o capital nos obriga, artificialmente, a necessitar). Ele ainda ressaltou que o encontro do trio no Café Select em Paris é mentira; que isso foi só uma frase de efeito para a introdução do conceito de do it. Por mais que se tente uma “radical experimentação de conceitos que enfatizem a livre interpretação que caminhem à liberdade”, o paradigma da produção de arte contemporânea européia ocidental, sobretudo a da crítica,  ainda insiste em se manter em Montmartre. Concordei, pois parece-me contraditório exigir a destruição do objeto em nome da não fetichização da arte (ou exigir qualquer outra coisa) e caminhar em sentido à liberdade ao mesmo tempo. 

 

-- Porém, se se tratar da liberdade de consumo, o VISA e o Mastercard oferecem diferentes formas de exigências, personalizadas para cada tipo de fetiche sobre a noção de liberdade, de acordo com cada tipo de perfil do consumidor.

-- Política é o fim. E a crítica que não toque na poesia! 

 

Acabamos nos encontrando numa pizzaria na esquina da Rua Fernando Pessoa e Alberto Caeiro, na periferia de São Paulo. O Performer me disse que sua série surgiu depois de ter assistido a todo o acervo de performances do Centre George Pompidou, em Paris, quando lá morou para realização de uma residência artística, em 2005.  Assistiu a tudo e, para sua surpresa, sentiu uma profunda decepção com as imagens dos registros de performances de Marina Abramovich, Vito Acconci, Chris Burden e todos os outros. Para ele, as imagens esmagaram as propostas e amoleceram o impacto que nele causou primeiramente a leitura da descrição dessas performances.

 

As imagens passam uma noção bizarra e conhecidamente problemática  de “verdade”, de que aquilo aconteceu mesmo, daquele jeito. Enquanto que a leitura garante uma realidade verossímil, onde nela pode-se encarar o que há de verdadeiro na ficção. A pretensão de deter uma verdade absoluta é fonte de toda a violência, diz Muniz Sodré. E, talvez, as imagens criadas com dispositivos analógicos, eletrônicos e digitais, mesmo que experimentais, não deixem de ser afirmações de uma verdade qualquer, documentada ou atuada, da mídia ou da arte, não importa. Imagens são instrumentos de construção de camadas enganadoras, fictícias ou ficcionais da realidade? 

 

 -- Pergunta difícil essa - um clic! 

 -- Sim. Na verdade, hoje em dia nem existe mais o real, e sim o uso que se faz do real para se criar uma cadeia de microrrealidades individuais, cujos desejos, vontades e pensamentos alimentam o capitalismo cognitivo, ou cultural, informacional, ou ainda neoliberal.

-- -- Mas eu concordo que a vida é boa. Embora seja apenas a coroa; a cara é o vazio.

-- Hahahaha. Basta de filosofia! Isso tudo é um antiacidente, como uma rima.

-- Você está triste? Teu nego te abandonou? 

-- Não é bem assim...

 

Pedimos outra pizza, dessa vez metade portuguesa, metade aliche e mais duas cervejas. Em seguida, o Performer relatou a simples equação de seu projeto: “Ficção +  vontade de subverter as linguagens + humor + puxar o tapete de quem lê + o território de verdade que há na ficção = ?. Esse ‘?’ é realmente um mistério. Acho que minha relação com a arte é e sempre será um pouco de diletantismo e brincadeira. Talvez tenha sido o André Gide que criou o conceito de falésia: textos, romances, poemas que vão levando o leitor e, de repente, largam-no não numa estrada, mas sim numa falésia. Gosto dessa ideia. É quase a mesma de tirar o tapete. É o “?””.

 

O “?” é o espaço indefinido e impreciso que se abre na ausência da imagem numa exposição de artes visuais, pois “?” não dita regras, não tira nada do lugar para se impor, não decreta a morte do autor, não inaugura um novo gênero nas artes e nem privilegia a ideia conceitual sobre o objeto físico. O “?” talvez seja uma das definições possíveis do artista-etc. do Ricardo Basbaum. Antes de se aproximar da proposta de Olbrist de tradução de um trabalho artístico ao circular em várias permutações de linguagem, há aqui uma negociação comum entre o proponente e o reativador do texto, uma vez que o projeto não necessita da realização da peça instruída para existir. Desse modo, questiona-se a natureza e a função de seu papel como artista e coloca sobre o público o critério de emancipador do projeto artístico. 

 

Contrário à esfera imperativa, mesmo que lúdica, da arte como instrução – baseada na des-autorização do trabalho artístico ou numa redefinição ou desaparecimento do mesmo – o que aparece aqui é a economia invisível da interatividade da leitura, uma vez linear entre livro-leitor, e agora multidirecional entre espaço físico-leitor. Certamente as instruções de Duchamp, Yoko e Fluxus informam o raciocínio do Performer, mas ele tem o sol em Sagitário e a lua em Câncer e jamais diria “faça isso”, ele apenas faria. O público negocia na falésia e não na ideologia. O Performer é texto, o público é leitor e também editor. Como ele mesmo disse, “quem dá as instruções sabe muito bem fazer o que faz, ao contrário de mim. Eu jamais faria uma exposição chamada ‘Como viver junto’ e sim uma chamada ‘Já que eu não sei viver junto’, e com o charme desse ‘não’, sairia para a balada para exercitar a paquera”.

 

Paguei a conta e despedimo-nos. Peguei dois ônibus e o metrô e durante a viagem li a antologia de todas as performances já realizadas e/ou propostas pelo Performer, organizada por Fabio Morais. Confesso ter ficado um pouco encanada com o papo meio pessimista da apatia neoliberal, do mercado do desejo, da falta de vulnerabilidade ao outro e da crise do sensível na nossa geografia globalizada. Aliás, o pessimismo está super fora de moda hoje em dia, afinal de contas, há de se ver o lado bom das coisas. Ninguém está aí para acertar – como relatou a curadora da última bienal –, vamos logo tirando a pressão da ética do caminho. Os livros de auto-ajuda e os terapeutas dizem que o poder da mente positiva pode garantir a felicidade, tal e qual aquelas felicidades VIPs que vemos nas revistas, nos comerciais de TV e nos jornais que acabam por cunhar o novo gênero milionário e protocolar da “Arte vencedora” (O Estado de São Paulo, Caderno 2, 15/12/2009).

 

-- Não me interessa mais essa trip judaico-cristã de colonizado com complexo de inferioridade, cuja autoestima e sucesso são medidos pelo reconhecimento de aspirantes a intelectuais e pelos dólares ou euros do Outro - com ‘o’ maiúcsculo - pra inglês ver. Fui eu que dei um fora nele, e ele nem sabe. Ai, que preguiça. Eu disse: estou muito ocupada estudando o Macunaíma – por mensagem de celular – e ele acreditou. Há um istimo entre meu deus, com ‘d’ minúsculo, e os Deuses dele.  

-- Sei.

 

O efeito inebriante da cerveja ia passando e me lembrei de ter lido no texto da Suely Rolnik (lindo, por sinal, chamado “A Geopolítica da Cafetinagem”, de onde foi tirada a ideia da crise do sensível) uma citação que ela faz da Lygia Clark, dita lá nos anos 70: “No próprio momento em que digere o objeto, o artista é digerido pela sociedade, que já encontrou para ele um título e uma ocupação burocrática: ele será o engenheiro dos lazeres do futuro, atividade que em nada afeta o equilíbrio das estruturas sociais. A única maneira para o artista de escapar da recuperação é procurar desencadear a criatividade geral sem qualquer limite psicológico ou social. Sua criatividade se expressará no vivido.”

 

Mas depois relaxei, e imaginei-me expressando as seguintes instruções do Performer: há de se fazer um documentário sem dinheiro, que consiste somente dos créditos com os nomes dos amigos que participaram gratuitamente de sua produção, chamado Solidariedade (Já que eu não sei fazer documentário); há de se ligar caixas acústicas, uma por uma até a sexta, que gradativamente subtraiam o som do entorno, até chegar ao silêncio (Já que não sei fazer música); há de se salvar os objetos comuns de seu estado de ready-made e reinseri-los em seus circuitos familiares, os de mercado (Já que não sei fazer arte contemporânea). Depois disso, inspirada com as expressões criativas vividas, talvez escreva instruções de como escrever um texto critico para o Performer realizar. Já que não sei escrever texto crítico. “?”

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