A abjeção do olhar - Paço das Artes
2006
Bataille sempre mostrou um profundo desgosto pela hipocrisia da exclusão e pelos mecanismos de apagamento e rejeição do olhar. Para o filósofo francês, a força centrípeta da sociedade não é a de atração, mas a de repulsão, na medida em que se repugna as sobras e restos da cultura do excesso, relegando seu lixo à invisibilidade e assim purificando-a, mantendo seu funcionamento numa lógica do que ele chama de abjeção social.
Na elaboração de Kristeva, algumas cinco décadas mais tarde, abjeção é um estado de crise. Não é tão somente a repulsão física, mas aquilo que por definição perturba identidades, sistemas e ordens. É algo que, numa espécie de fronteira, simultaneamente fascina e repele, incomoda e alivia; “abjeção é sobretudo ambigüidade”[1].
A exposição intitulada Invisíveis de Camille Kachani para o Paço das Artes reside nessa fronteira. O artista não apenas se apropria de imagens de dejetos e resíduos da cultura do excesso como também os reorganiza num processo de sedução e desejo. Objetos bidimensionais em tamanho natural são meticulosamente confeccionados e apresentados em pelúcia e emborrachados: caçambas de lixo imundas, engradados de cerveja empilhados e sujos, uma Kombi de ferro-velho seduzem-nos pelo seu valor estético – não da ordem do grotesco, mas do estranhamente belo.
Contrariamente a outros artistas que trabalham com a lógica do abjeto mais diretamente, tais como Cindy Sherman (Disgust Pictures Series, 1987 e Sex Pictures Series, 1992), Gilbert & Georges (Naked Shit Pictures, 1995), e o próprio Kachani (Auto-retrato em processo, uma instalação inédita que contém mostras de todos os tipos de dejetos orgânicos do corpo do artista coletadas diariamente e expostas em tubos de ensaio), as obras da série Invisíveis passam pelo abjeto e criam atração pela repulsão; é o intocável que se faz querer sentir e acariciar.
Cria-se na relação entre obra e espectador uma operação de transgressão de valores e resignificação dos sentidos, uma vez que se revela a precária parcialidade do exercício do olhar, dependente, aqui, do complemento do toque para que a obra seja apreendida integralmente. Ainda, a obra de Camille Kachani suspende mecanismos habituais de racionalização dos espaços sociais em processo de homogeneização num contexto de uma cultura tecnocrata e globalizante. São obras que indagam o subconsciente e apelam à nossa consciência.
[1] Kristeva, Julia. Powers of Horror. Nova York: Columbia University Press, 1982.