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I am ready to sing - Galeria Jaqueline Martins

2012

Análise

 

Tão abstrata é a ideia 

do teu ser

Que me vem de te

olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos

teus, perco-os de vista,

 

E nada fica em meu 

olhar, e dista

Teu corpo do meu

ver tão longemente,

E a ideia do teu ser 

fica tão rente

 

Ao meu pensar 

olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, 

Que, só por ter-me

Consciente de ti, nem 

a mim sinto.

 

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo,

nem sabendo

 

Que te vejo, ou sequer 

que sou, risonho

Do interior crepúsculo 

tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

 

Fernando Pessoa, 1911

 



Que dificuldade decidir se o poema do Fernando Pessoa seria a epígrafe do texto ou o seu primeiro parágrafo, apropriado e tornado anônimo,  em forma de poema que inicia um escrito em forma de ensaio. Optei mesmo pela epígrafe, pois jamais conseguiria apropriar-me de uma primeira pessoa assinada por tão imenso autor – sou pequena –, mesmo que a abstração máxima do “eu” perante o ver o “tu” se desdobre com tamanha violência num nada, que convide uma outra autora a fazê-lo. O corte da decisão se deu pelo fato de esta publicação ser páginas A4 dobradas ao meio e sem grampos. Imaginei ser pertinente aqui descolar a primeira parte do resto, como se desloca o refrão de suas estrofes quando de repente uma canção cola na mente, destituída de autoria e de lugar. Um zumbido, longe, desautorizado e retido na voz de quem murmura ou canta em silêncio, que canta como que para ninguém. 

 

A exposição “Intervalo”, de Marcelo Amorim retrata uma constelação de ninguéns, que inclui o artista. Em seu método de colecionar imagens antigas, tanto pessoais quanto anônimas adquiridas em sebos para depois transportá-las para outros suportes, mantém uma oscilação curta entre pessoalizar o anônimo e anonimizar o pessoal. Neste caso, não se trata de avaliar a natureza do suporte para onde são transportadas as imagens – da fotografia à pintura, ao lambe, ao vídeo e ao desenho -, mas como essa passagem de imagens existentes no mundo para sua recolocação de volta para o mundo, e o intervalo entre elas, politiza o coletivo.

 

A fotografia desautorizada, tão anônima em sua autoria quanto a quem ela grava,  “traduzida” e trazida para outros suportes e lugares, nega seu estado original e inaugura uma outra dimensão estética às suas narrativas. Em nenhum momento a estética figura como um julgamento de valor dualista, mas sim como uma recuperação desinstitucionalizada do aisthitikos, a raiz etimológica da palavra, que se refere ao ato de perceber – e saber? – a partir da experiência sensorial subjetiva.  E aqui vem outro corte. Essa experiência subjetiva é descolada da esfera da identidade. O princípio identitário pressupõe uma lógica  vetorializada na medida em que eu me defino a partir do que me difere do ou me assemelha ao outro. O sujeito, neste caso, é predicado pelo que lhe é externo. O fôlego do exercício identitário é sempre maior do que o indivíduo consegue suportar e assim necessita inflar o ego para ali caber a identidade. Egos com estrias. O subjetivo, aqui, não é o individuado, mas o largo, liso, o da humildade de apequenar-se e se dissolver no mundo: “E se eu digo ‘eu’ é porque não ouso dizer ‘tu’, ou ‘nós’ ou ‘uma pessoa’, sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu”.

 

É do intervalo incomensurável deste hífen de que se trata “Intervalo”. As imagens apropriadas, dotadas de uma carga familiar comum a todos, não se tornam componentes de um arquivo de experiências individuais do artista, mas sim um índex da necessidade humana da fabricação de símbolos para tornar o caos da vida um pouco mais manejável. As imagens de família, do grupo escolar, do esporte atlético masculino, uma vez perdidas em seu próprio circuito e destituídas de sua condição original, revelam ao mesmo tempo que dissolvem os mecanismos de institucionalização da vida para fazer sentido dela; revelam e dissolvem a institucionalização do “eu”, que, caminhando pelo espaço expositivo, sentindo que sonha o que se sente sendo, torna-se “tu”, “nós”  e “outra pessoa”.

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