Joaquim Antunes nº 1069: _obra - Atelier Shirley Paes Leme
2009
“Da posição de observador pode-se notar algumas coisas vivas”
Leonilson
CEASA 24.07.79 SP
desenho sobre papel
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“A Obra, ou Obra, ainda não estou muito certa”, especulava Shirley Paes Leme quando da minha visita ao seu novo atelier.
Ainda se vê na rua citações do que foi a casa original.
Vê-se no atelier o catálogo minimalista da memória da casa original.
Da implosão à construção, a Obra, ou A Obra é um grito ao efêmero da materialidade da arquitetura, e também sussurro à arquitetura residual tornada oração principal.
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Era uma casa simples, uma espécie de cortiço que abrigava um tanto de famílias. Uma arquitetura remendada, fragilmente construída por um processo de inchaço conforme a necessidade e o poder aquisitivo de seus moradores aos poucos aumentavam.
Essa casa foi lugar de intervenção artística pelos alunos de Shirley, como parte das atividades discutidas em sala de aula. Naquele primeiro momento, a casa tornou-se espaço artístico, um destino, e não apenas um mero endereço, cuja fachada escondia a compartimentação alienante dos efeitos de um capitalismo pautado pela exclusão e pelo descarte. Talvez a intuição já tivesse apontado para um recente e não tão lento processo de gentrificação na região, em função da alta e rápida valoração imobiliária advinda de fluxos subterrâneos ainda em construção.
Lugar motivado pelo afeto – como garantir sua continuação, sua seqüência? – Shirley batalhou por um financiamento durante o período de um ano e comprou o imóvel. O projeto inicial seria construir o atelier em torno da casinha, mantendo-a intacta o tanto que fosse possível.
Diferente de Gordon Matta-Clark, que acelerava os processos de desintegração a partir da eliminação da “coluna vertebral semântica”[1] da arquitetura, a intenção de Shirley foi a de dilata-los. As cesuras de Matta-Clark – as fissuras de prédios ao meio, a eliminação de paredes, vigas, lajes para se fazer uma esfera no centro do edifício – denunciavam o caráter efêmero, precário e ideológico da arquitetura como construção simbólica, e atacava também o ciclo de obsolescência programada da cidade[2].
Mas à artista interessava o vínculo afetivo com aquele lugar, e portanto o desejo de abraça-lo com a consciência de que sua precariedade e efemeridade se juntariam às dela, num processo de coextensão do inevitável; uma arquitetura de conseqüência.
Em termos práticos, seria realmente impossível insistir nesse tipo de vínculo; ou, em termos reais, seria praticamente impossível não imbricar a antiguidade da casinha com a novidade do atelier; transforma-la em ruína ativa numa narrativa tecnológica e historicizante. Mas demoli-la por completo e construir sua memória configuraria um risco. O prédio foi pensado atelier porque uma vez os habitantes da casa original confiaram à artista aquele lugar específico como um espaço artístico temporariamente seu. Como re-conhecer a confiança em termos formais após a violência da destruição?
Mas à parte da dificuldade em faze-lo e o alto custo, o próprio tempo determinou que seria ele o agente definidor dessa destruição; exerceu sua força natural sobre aquela arquitetura, que entrou em erupção. A casa caiu. O time de arquitetos que assina o presente projeto (Marcelo Ferraz, Cícero Ferraz Cruz, Francisco Fanucci e Luciana Dornella), sugeriu um desenho de respiro: um espaço amplo de concreto, vidro e luz zenital. Aquela que penetra o ambiente através de aberturas situadas na cobertura da edificação, a luz zenital é um importante ponto de contato entre o novo atelier e a pesquisa artística de Shirley. O que se convencionou como arquitetura vernacular – o pau a pique, a tenda, o barro, o precário, o informal –, objeto de análise em sua dissertação de doutorado, têm em comum a luz penetrando pelas frestas, pelos intervalos da costura.
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“No.Thing Works”[3]
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“The violence turns to visual order, and, hopefully, to a sense of heightened awareness”, disse Matta-Clark. Nas imagens catárticas das explosões nas últimas cenas de Zabrinskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni, vê-se uma composição audiovisual violentamente harmônica. Conforme a casa foi-se destruindo, Shirley coletava as placas de madeira, os tijolos, cabeamentos, telhas e os re-agrupava, re-arranjava em peças minimalistas, citando Richard Serra, Carl André, Sol Le Witt e Eva Hesse.
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Uma espécie de geometria invertida, um filme ao contrário, uma arqueologia de resgate do contingente – resíduos carregados de símbolos (memória do próprio material como matéria-prima) são uma constante no trabalho da artista: fumaça, carvão, picumã, fotografias de existentes organizações formais no espaço como citação espontânea de seu trabalho em suas instalações-apropriações (não tanto a fotografia como resíduo do tempo – Barthes, Sontag –, mas o tempo como material esculpido pela fotografia – Tarkovski[4]).
Com a coleção e catalogação dos resíduos da casa original, a artista criava dobras, garantia a coesão da continuidade alimentada pela ética do afeto e atualizava, a partir da memória de experiências vividas ali, a usabilidade do material. Uma dobra construtivista do afeto pela memória baseados em gestos de rigor formal herdados por seu professor, Amílcar de Castro.
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O “lembrar”, especificamente o verbo, e não o substantivo “lembrança”, é uma ação efetivada a partir do ontem em direção ao passado; ferramenta de construção da memória. A lembrança seria índice de catalogação; o lembrar, portanto, é a própria ação de construir. Aquilo que decorre no hoje são experiências. (Já o futuro é pura ilusão; a passagem do tempo, a efemeridade, a ruína ativa como herança posterior, o depois, o até o fim da vida, partem do paradigma do agora). O lembrar trata dos objetos transitivos diretamente tornados experiência.
A memória da casa construída por Shirley como catalogação minimalista é latente. Não chega a ser um memorial, não é dedicado à memória daquele lugar, pois ele já não existe como lugar. Existe como Obra, que se aproxima mais de uma escala de um monumento íntimo, de 1:1. E a intimidade não é exclusivamente a da artista, pois o “íntimo” desse monumento é o primeiro ponto da escala de 1 para o outro 1, a coletividade dos sujeitos, que, individualmente e no instante da recepção, acionam essa arquitetura de con-sequência como estética própria; adicionam às suas d Obra (s).
[1] Marianne Brouwer, “Dejando al Descubierto”. In: Marai Casanova (org.) Gordon Matta-Clark (Valencia: IVMA, 1993), p. 51
[2] Guilherme Wisnik, “O ‘informe’ e a ponte truncada entre arte e arquitetura”. In: 27a Bienal de São Paulo: Seminários, eds. Lisette Lagnado et al. (Rio de Janeiro: Cobogó, 2008), p. 157
[3] As citações em inglês que percorrem o texto são de Gordon Matta Clark citado em Ted Castle, “Stairway to Heaven”, Flash Art International, Junho-Julho, nº 90 – 91 (1979).
[4] Andrej Tarkovski, Esculpir o Tempo (São Paulo: Martins Fontes, 2002).