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Vias distorcidas: costuras, ressignificações e a sensibilidade que se renova com o tempo - Paço das Artes

2007

A imagem, disse Godard, é apenas o complemento da idéia que a motiva. Desconstruindo Letícia Parente, de Luiz Duva, resulta então em imagens-complemento da idéia que o motivou manipular ao vivo a imagem-complemento da idéia de Letícia Parente em Marca Registrada, de 1975. Letícia já havia afirmado que sua prática artística era a de enfatizar a arqueologia do tempo presente. A estrutura em camadas descrita acima estabelece as coordenadas de uma situação arqueológica espaço-temporal digna de ser observada em seu caráter experimental, técnico e semântico. Da linearidade tensa do vídeo de Letícia à sua desconstrução no processo de inacabamento da performance em tempo real de Duva, o que ainda permanece é a potência inventiva de projetar e experimentar.

 

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A experimentação com novos meios tecnológicos marcou a produção dos pioneiros do vídeo no Brasil nos idos de 1970. Longos planos-sequência como registro de performances, intervenções no monitor de tv, a intercalação de técnicas (“pintar” com a câmera), a inscrição do absurdo como método de narrar a análise de vivências contrapunham-se à produção televisiva da época, ordenada e dependente da comunicação informacional (censurada). O processo de transmitir o conteúdo artístico sobrescreveu-se sobre seu próprio conteúdo. Sendo o processo o aspecto vital da obra, abre-se a possibilidade de inserção da interlocução do público na construção de seu conteúdo.

 

Em tempos anteriores aos dos pioneiros do vídeo, mas não menos conflituosos, Walter Benjamin decretava as vias de extinção da arte de narrar. Para o autor, o narrador não está presente entre nós em sua atualidade viva; seu interlocutor vive a exigência de ocupar uma localização numa distância acomodada, num ângulo favorável, devido à privação de uma faculdade que parecia ser segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. Isto porque, na modernidade, o “informar” ocupou a atividade de “narrar”. A informação só se valida no novo, ela só vive nesse momento e tem que se explicar nele. Os fatos chegam acompanhados de explicações, ou seja, quase nada está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação: para Benjamin, metade da arte narrativa está em evitar explicações.

 

A novidade da experimentação artística com a tecnologia vigente na segunda metade do século XX se encerrava na própria técnica. Os vídeos pioneiros não explicavam nada, não informavam. Seja através do rigor conceitual ou da linguagem do absurdo, eles narravam as condições opressivas da vivência diária.

 

Marca Registrada pretendeu, nas palavras de Letícia, “a materialização da idéia de reificação da pessoa, fato característico da sociedade no momento histórico presente. A coisificação implica em pertencer. O pertencer porém transcende também à coisificação por força da ligação profunda e indevassável com a terra pátria. A marca registrada pode se assemelhar ao “ferro” de posse do animal mas também ela constitui a base de sua estrutura e acima da qual a pessoa sempre estará constituída em sua historicidade: quando de pé sobre as plantas dos pés”. A marca registrada é também o blindspot, o ponto cego da herança violenta da colonização, patriarcalismo e ditadura que constituem essa historicidade; pois, quando de pé sobre as plantas dos pés, não se enxerga a marca. Quando de pé, parada ou em movimento, internaliza-se a reificação da pessoa como produto dessa herança, desde a sua base corpórea até sua estrutura identitária. A linearidade tensa do vídeo é revelada na agonia da lentidão em que a artista costura na pele o conhecimento da coisificação do sujeito (Made in Brazil), que, sem se revelar nas imagens do vídeo, só lhe resta levantar e escondê-lo para que se possa continuar o exercício da vida. É como se a violência constituinte desse conhecimento fosse muito dolorosa para ser contemplada em sua eterna costura. “Dá muita aflição, porque a agulha entra, fere meu pé – só podia ser meu próprio corpo”; e só podia ser esta parte do corpo. Não se rendendo à paralises física da revelação do saber – sentada, imóvel – , há de se levantar e de se caminhar com ele, mesmo sem enxergá-lo, mesmo que se escolha temporariamente não sabê-lo – pois ele fere. E deixa marca.

 

A tensão dessa narrativa se revela na estrutura rigorosa da ação do sujeito consciente em registrar a marca desse conhecimento e de posteriormente suspendê-lo, como se suspensa fosse, também, a esperança de obter agenciamento sobre ele. Aqui, antes de ser uma novidade técnica, a tecnologia é o modo pelo qual esse conhecimento é transmitido e dividido entre Letícia e seu interlocutor; ela é personagem visível e invisível na obra. Para a artista, a tecnologia potencializa ao máximo todas as vias de acesso e todas as vozes que acrescentam a capacidade de penetrar na ocorrência da narrativa. Em suma, “o que se quer do vídeo é a possibilidade de confrontar a vivência no nível mais profundo, no plano do visceral, passando ao do corpóreo tátil com aquelas sofridas nas regiões circundantes do externo imediato”. Diferente do novo da informação, a narrativa não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. 

 

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Tampouco foi a intenção de Duva de meramente re-enformar (de re-formar e re-informar) a obra de Letícia do ponto de vista da novidade técnica. O artista assegura-se da faculdade de intercambiar experiências, re-enunciando a potência inventiva de Marca Registrada. De imediato, um primeiro acesso à performance de Duva pode ser entendido como uma atualização das possibilidades de experimentação com dispositivos tecnológicos atuais. E de fato o é. Mas há também a intenção em Desconstruindo Letícia Parente de revelar uma atualização na sensibilidade que se renova com tempo: do analógico linear às variações algorítmicas com suas regras arbitrárias determinadas pela combinação de um simples binário, que organizam nosso cotidiano, determinam nosso comportamento, sempre com a ligeira sensação de que o real está constantemente nos escapando, escorrendo pelos dedos das mãos.

 

O plano visceral que se espera do vídeo se mantém. Já o plano do corpóreo tátil transborda nas regiões  circundantes do externo imediato, pois a performance ocorre em três telas de 200 x 300 cm cada, delineando uma gramática espacial propiciada pela sua arquitetura imersiva e pelo descompasso da desconstrução das imagens do vídeo em tempo real. O espectador costura seu próprio percurso dentro da performance de Duva, escolhendo as vias de re-significação da narrativa sugerida pelo artista.

 

Os primeiros dez minutos da apresentação mostram o Marca Registrada na íntegra. A partir daí, Duva manipula as imagens se valendo de “marcas” que ele inseriu no vídeo, desconstruindo-o, cortando-o, distorcendo-o. A fita VHS do vídeo de Letícia entregue a ao artista continha fortes “drop-outs”, pequenas falhas resultante do desprendimento das partículas magnéticas devido ao defeito da fita ou ao seu envelhecimento. Como efeito visual, durante a reprodução, aparecem linhas horizontais brancas na imagem. Duva isolou e transformou esse efeito em um frame de vídeo, distribuindo-o (sampleando) aleatoriamente pelo vídeo inteiro. Esses riscos, além do efeito sonoro gerido da própria imagem, funcionam como marcas de manipulação durante a performance. O resultado é uma não-linearidade tensa e cortante. “Quem hoje consegue registrar os vários níveis de emoção de uma coisa sem danificar profundamente a imagem?”

 

Essa questão colocada, em 1984, por Francis Bacon – fonte infindável de inspiração para Duva na criação de inúmeros de seus trabalhos – foi em resposta à pergunta sobre o porquê das distorções em suas pinturas. Para Bacon, a técnica, ou o meio de reprodução (medium) de uma idéia é tão artificial, que para resgatá-la da artificialidade e remetê-la de novo ao real, só a partir da violência da distorção, ou da desconstrução de sua forma verdadeira. A técnica só importa enquanto remete a algo que a ultrapassa, sem o que não se justifica.

 

A releitura sobre a obra de Letícia Parente proposta por Duva não se valida somente na novidade do uso diversificado com novos meios tecnológicos. Aqui, a tecnologia é também personagem visível e invisível. É sobretudo a espacialização da narrativa, ao invés de sua temporalização, e a capacidade de inscrever a experiência do interlocutor dentro dela que resgata com força para o real a idéia já distorcida que a artista traçou há 32 anos. O processo de transmissão do conceito da obra inclui o aleatório, o inacabado, o recombinado, o repetido, o interrompido. Ao participador é dada a oportunidade de alinhavar os recortes e escolher suas próprias vias de acesso à narrativa; ou seja, lhe é dado o agenciamento sobre ela.

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A distorção maior e mais sensível em Descontruindo Letícia Parente é a inauguração do agenciamento sobre o conhecimento doloroso da coisificação do sujeito. As imagens manipuladas em tempo real não têm começo nem fim; sua escrita é arbitrária e nada impede que se leia seu conceito a partir da descostura da marca que registra a constituição do sujeito sobre o signo da historicidade colonialista e patriarcal. No processo de distorcer sua condição coisificada e assegurando sua condição como sujeito da ação de descostura, Letícia desenraiza-se. E se levanta apenas com uma leve cicatriz.

 

 

 

                                                          

 “A arte é um instrumento de descoberta e conhecimento do mundo, remetendo àquele que se conecta com ela; não ao seu conteúdo mais direto, propriamente dito, “mas ao modo pelo qual ele é transmitido” (processo)”. Trecho do texto “Projeto de Arte Experimental”, escrito por Letícia Parente em 1976; cedido pelo curador dessa mostra e filho da artista, André Parente. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Walter Benjamin. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 197-221 (publicado em 1936 sob o título Der Erzähler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows)

 

 

 

Letícia Parente, “Proposta Geral da Obra em Vídeo”. Texto não publicado. Cedido gentilmente por André Parente.

 

 Ibid.

 

 Ibid.

 

Benjamin, p. 204.

 

David Sylvester, Entrevistas com Francis Bacon: a brutalidade dos fatos. Trad. Maria Teresa Resende Costa. São Paulo: Cosac & Naify, 1995, p. 148.

 

Jean-Claude Bernadet, O autor no cinema. São Paulo: ed. Brasiliense/Edusp, 1994, p. 56.

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