A conspiração do foda-se – Tabloide, plataforma par(ent)esis
2021
CONVERSA DE FIM DE TARDE DEPOIS DE TRÊS ANOS SEMANAS NO EXÍLIO
Os garçons empilhando as cadeiras você me olhando e me pedindo que fale Por Favor Fale Mas Não Escreva eu evitando o toque ruim dos ponteiros do relógio que anuncia a já famosa fuga de nossos corpos cada um para sua ponta da cidade - se nosso amor fosse revólver eu seria o cabo e você a mira tal como dizia a professora Sofia Jones é terrível a existência de duas retas paralelas porque elas nunca se cruzam e elas apenas se encontram no infinito a verdade é que nunca nos interessou a questão do infinito mas o resto das ideias matemáticas claro que sim eu na verdade prefiro mais de mil vezes sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa enquanto você fala sobre raízes quadradas enquanto você fala sobre ladrões de figos enquanto você fala sobre o tropeço da baleia subitamente eu já nem sei sobre o que você fala porque a forma como seu dente incisivo corta e suspende toda a beleza da cafetaria faz com que eu novamente entenda que pelo sétimo dia é chegada a hora do cuco e do canto do cuco portanto eu pego minha bicicleta e como de costume você faz meu retrato de cabelo todo desenhado no vento em jeito de menino que está sempre indo embora à mesma hora e que amanhã se tudo der certo voltará à mesma hora para o mesmo amor a mesma mesa a mesma explosãocom toda a certeza a mesma fuga porque você e eu a gente é feito de matéria escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geléia e espanto.
Matilde Campilho
A primeira coisa que fiz quando saí da cama, depois de ter estado infectado por um vírus tão abrangente e incerto como a geografia de um novo continente, foi me perguntar: em que condições a vida vale a pena ser vivida? A segunda coisa que fiz, depois de tentar achar a resposta pra essa primeira pergunta foi escrever uma carta de amor.
Fiquei doente em Paris numa quarta-feira dia onze de março, antes do governo francês decretar a quarentena de toda a população, e quando eu consegui levantar pela primeira vez em dezenove de março - um pouco mais do que uma semana depois - o mundo tinha mudado. Quando caí na cama doente, o mundo era circundado, coletivo, viscoso, sujo e barulhento. Quando eu levantei da cama, o mundo tinha-se tornado distanciado, individualista, higiênico. Enquanto estava doente, fiquei incapaz de acessar as implicações políticas e econômicas porque o desconforto da febre tomou meu corpo e minha energia vital. Ninguém consegue filosofar com uma cabeça em combustão. Eventualmente assistia ao noticiário, o que só me deixava mais deprimido. A realidade era indistinguível do pesadelo febril que via nas primeiras páginas dos jornais. Por dois dias inteiros, como uma prescrição ansiolítica, decidi me abster de qualquer notícia. Atribuo minha cura a esse gesto e ao óleo essencial de orégano. Eu não tive dificuldade para respirar, mas era difícil acreditar que seria capaz de continuar respirando; não estava com medo de morrer, mas morria de medo de morrer sozinho.
(Somos seres táteis; a pele é o órgão mais sensível, forte, exposto do corpo. A pele filtra toda a experiência vivida, até mesmo a da linguagem e a da imagem, se concordarmos que a audição e visão são vivenciados como um toque à distância, que se aperfeiçoa ao alcance da mão e se realiza – física e inteiramente, no toque da pele. Me interessa tudo que não é meu, principalmente as tatuagens na minha pele, principalmente minha munheca de plástico de cuja pulsação o médico prescreve a cura de todos os males).
Entre a febre e a ansiedade, pensei que os parâmetros da organização social tinham mudado para sempre, sem possibilidade de volta ou recomeço. Senti isso tão fortemente que parecia um furo de furadeira no meu peito. Tudo terá a forma das coisas que se formaram a partir desse aqui. A partir de agora, teremos mais acesso ao consumo de formatos digitais e virtuais excessivos, mas nossos corpos, os organismos físicos, ficarão desprovidos de todo contato, de toda vitalidade. A mutação se manifestaria como a cristalização da vida orgânica, como a digitalização do trabalho e do consumo, como a desmaterialização do desejo.
(HC um dia disse que a tradução poderia estar, num dente de ironia, a serviço da benesse nutritiva da tradutora: uma transfusão de sangue, uma vampirização – virtualidade máxima, que se aproxima da dos povos nativos e seu tempo anfíbio – depois da destruição tinto-digestiva do texto original. Mas a tradutora reflete textos em três telas – a do computador onde escreve, a do celular onde lê o texto traduzido do Paul do francês pro inglês executado por Molly Stevens e a da lente do óculos. São muitos filtros lisos e gelados, sem riscos; espero não ter perdido o batimento cardíaco de Paul, nem o meu, que se forma enquanto escrevoleiotraduzo essa carta..., nem o de Molly.
Molly! Tenho um caldo de ossobuco no fogão descongelando enquanto ferve; acho que vai melhorar nosso sistema imunológico: do Paul, do texto, da par(ent)esis, da Artforum, meu, de Molly e do acordo ortográfico da língua portuguesa, que essa tradução respeita ((maybe? O caldo de ossobuco com muitos legumes orgânicos fervendo no fogão com o axé da boa saúde e da ventura; com um sol cintilante lá fora, 32 graus Celsius e o oceano me convocando, mas estou aqui nas três telas há três semanas)). Bebo vinho tinto enquanto escrevo também. Pela autoridade do contexto, deveria estar bebendo cerveja gelada, mas refuto toda e qualquer autoridade. #ficaemcasa!)
Os casados estão agora condenados a viver 24horas/dia com quem se casaram amando-se ou odiando-se, ou ambos. Dá igual? Casais são governados segundo as leis da física quântica que postula que não há opostos nos contrários, apenas uma simultaneidade dialética. Nessa nova realidade, aqueles de nós que tinham perdido seus amores, ou que não o encontraram em tempo – isto é, antes da mutação do COVID 19 – estavam condenados a passar o resto da vida totalmente sós. Sobreviveríamos, mas sem contato, sem pele. Aqueles que não se atreveram a dizer à pessoa amada que a amava não poderia mais se dar ao prazer de expressar seu amor e teria que viver para sempre com a projeção do que teria sido a antecipação daquele toque, daquele encontro físico de línguas (do dito, do beijo) que, agora, jamais aconteceria. Aqueles que escolheram viajar, permaneceriam para todo o sempre do outro lado da fronteira; e aqueles privilegiados que fugiriam para suas casas de praia ou no campo com cachoeiras para viverem/turistarem sua “estadia” em quarentena (coitades!), jamais poderiam voltar para seus lares nos centros urbanos; suas casas ali seriam ocupadas, sem violação de reintegração de posse, por populações que de fato permaneciam e clamavam a cidade em tempo integral. Aquilo que parecia temporário e imprevisível como reação a chegada do vírus inauguraria um temporário tempo presente sem fim.
Será que eu, uma pessoa de quarenta anos, sobreviveria para testemunhar uma mudança real depois do vírus? Não sei...Instaurou-se uma nova realidade. A vida após a grande mutação. Foi então que comecei a me questionar se a vida assim valia a pena ser vivida ...
(Não assim, não tendo que acordar cada tela com o toque do dedo indexador a cada x segundos...tão básico; há de ser mais complexo do que isso: acordar o texto originalfrancêstraduzidoproinglês numa tela diminuta enquanto a tela do texto traduzido pro português permanece acesa em seu próprio tempo e a tradutora, refém de ambos os tempos que, não fosse por um cálculo tosco de permanência ativa pela sorte algorítmica, poderia estabelecer um ritmo harmônico entre ambas. O tempo do palíndromo. Vamos acreditar nisso).
De todas as teorias de conspiração que eu li até agora, a que mais me intrigou foi a de que o vírus foi criado em laboratório para que todos os ex- do mundo, aqueles que levaram um fora da parte que lhes tocava, pudesse se reaver com essa parte sem ter que admitir que um dia necessitaram do ar que elxs respiravam para que nós, xs que levaram o fora, pudéssemos respirar. Entendeu? Por isso a dificuldade de respiração sendo o principal sintoma de reconhecimento – quando não assinatura fatal – do COVID-19.
Explodindo de tanto lirismo e ansiedade acumulados durante a semana de cama, dor, febre, medo e incerteza, a carta a minha ex- era menos uma declaração desesperada de amor e mais um documento constrangedor para quem havia assinado. Mas se as coisas não poderiam jamais mudar, se aqueles que estavam confinados na distância jamais poderiam novamente se tocar, qual seria o propósito do constrangimento, do ridículo? Qual o propósito de se dizer à pessoa amada que você uma vez a amou de verdade – mesmo que entrevendo-a com um novo amor, ou em sua completa obliteração de mim – se você nunca mais a verá?
a verá
haverá
há ver a
a ver há
(silêncio)
A nova condição de tudo e de todas as coisas, em sua imobilidade escultural, conferiu uma inédita dimensão e intensidade ao foda-se, mesmo em seu próprio tom ridículo (não obstante libertador)
FODA-SE
Eu escrevi a terrivelmente patética carta à mão, coloquei-a dentro de um envelope branco, e com uma letra hiper caprichada, escrevi o nome e endereço da minha ex-. Levantei, me vesti, pus minha máscara, as luvas e os sapatos, que haviam ficado do outro lado da porta, e desci para a entrada do prédio. Ali, em acordo com as regras da quarentena, não me dirigi à rua. Fui até a área de serviço onde ficam os recipientes do lixo. Abri a tampa do container amarelo do lixo reciclável (papel) onde depositei a carta a minha ex-. Dirigi-me de volta ao apartamento. Lento. Deixei meus sapatos na porta. Entrei. Tirei as calças e coloquei dentro de uma sacola plástica. Tirei minha máscara e coloquei-a na varanda para arejar. Tirei as luvas, joguei-as no lixo e lavei as mãos por infinitos dois minutos. Tudo absolutamente tudo absolutamente tudo e tudo absolutamente estava de acordo com o ritmo e a forma que as coisas haviam adquirido após a grande mutação. Voltei pro computador e chequei meus emails. Ali estava uma mensagem dela: “Tô pensando em você durante a crise do coronavírus”.
(Coronavírus, no software pandêmico que escritoras usam para escrever em seus computadores – do Paul, da Molly, meu e da Matilde e de tantas outras, para além desse jamming – vem sublinhado de vermelho, irreconhecível; exilado do resto das palavras de qualquer língua na qual é proferido. Sempre no tempo transitoriamente presente das fronteiras de qualquer acordo ortográfico, que só existem para que sejam vencidas e não para conferir proteção).
No exílio é possível gozar do direito de ir e vir, mas há o assombro da coordenada proibida: a volta. O sotaque é a constante lembrança da execução de medidas de higienização. No nosso mundo até o COVID 19 o exílio se faz ao norte. Como será depois, não sabemos ainda. Agora está sendo pra dentro.
The Losers Conspiracy
I got sick in Paris on Wednesday, March 11, before the French government ordered the confinement of the population, and when I got up on March 19, a bit more than a week later, the world had changed. When I went to my bed, the world was close, collective, viscous, and dirty. When I got out of bed, it had become distant, individual, dry, and hygienic. During the sickness, I was unable to assess what was happening from a political and economic point of view because the fever and the discomfort took hold of my vital energy. No one can be philosophical with an exploding head. From time to time, I would watch the news, which only increased my discontent. Reality was indistinguishable from a bad dream, and the front page of the newspapers was more disconcerting than any nightmare brought on by my feverish delusions. For two whole days, as an antianxiety prescription, I decided to not visit a single website. I attribute my healing to that and to oregano essential oil. I did not have difficulty breathing, but it was hard to believe that I would continue breathing. I was not scared of dying. I was scared of dying alone.
Between the fever and the anxiety, I thought to myself that the parameters of organized social behavior had changed forever and could no longer be modified. I felt that with such conviction that it pierced my chest, even as my breathing became easier. Everything will forever retain the new shape that things had taken. From now on, we would have access to ever more excessive forms of digital consumption, but our bodies, our physical organisms, would be deprived of all contact and of all vitality. The mutation would manifest as a crystallization of organic life, as a digitization of work and consumption and as a dematerialization of desire.
Those who were married were now condemned to live twenty-four hours a day with the person they had wedded, whether they loved each other or hated each other, or both at the same time—which, incidentally, is the most typical case: Couples are governed by a law of quantum physics according to which there is no opposition between contrary terms, but rather a simultaneity of dialectical facts. In this new reality, those among us who had lost love or who had not found it in time—that is, before the great mutation of COVID-19—were doomed to spend the rest of our lives totally alone. We would survive but without touch, without skin. Those who had not dared to tell the person they loved that they loved them could no longer make contact with them even if they could express their love and would now have to forever live with the impossible anticipation of a physical encounter that would never take place. Those who had chosen to travel would forever stay on the other side of the border, and the wealthy who went seaside or to the country so as to spend the confinement period in their pleasant second homes (poor them!) would never be able to return to the city. Their homes would be requisitioned to accommodate the homeless, who, indeed, unlike the rich, lived full-time in the city. Under the new and unpredictable form that things had taken after the virus, everything would be set in stone. What seemed like a temporary lockdown would go on for the rest of our lives. Maybe things would change again, but not for those of us over the age of forty. That was the new reality. Life after the great mutation. I therefore wondered if life like this was worth living.
The first thing I did when I got out of bed after having been sick with the virus for a week that was as vast and strange as a new continent, was to ask myself this question: Under what conditions and in which way would life be worth living? The second thing I did, before finding an answer to that question, was to write a love letter. Of all the conspiracy theories I had read, the one that beguiled me the most is the one that says that the virus was created in a laboratory so that all the world’s losers could get back their exes—without really being obliged to get back together with them.
Bursting with the lyricism and anxiety accumulated over a week of being sick, afraid and uncertain, the letter to my ex was not only a poetic and desperate declaration of love, it was above all a shameful document for the one who had signed it. But if things could no longer change, if those who were far apart could never touch each other again, what was the significance of being ridiculous in this way? What was the significance of now telling the person you love that you loved them, all while knowing that in all likelihood she had already forgotten you or replaced you, if you would never be able to see her again in any case? The new state of things, in its sculptural immobility, conferred a new degree of what the fuck, even in its own ridiculousness.
I handwrote that fine and horribly pathetic letter, I put it in a bright white envelope and on it, in my best handwriting, I wrote my ex’s name and address. I got dressed, I put on a mask, I put on the gloves and shoes that I had left at the door, and I went down to the entrance of the building. There, in accordance with the rules of confinement, I did not go out into the street; rather I headed toward the garbage area. I opened the yellow bin and I placed the letter to my ex in there—the paper was indeed recyclable. I slowly went back to my apartment. I left my shoes at the door. I went in, I took off my pants and I placed them in a plastic bag. I took off my mask and I put it on the balcony for it to air out; I took off my gloves, I threw them in the garbage and I washed my hands for two unending minutes. Everything, absolutely everything, was set in the form it had taken after the great mutation. I went back to my computer and opened my email: and there it was, a message from her entitled, “I think of you during the virus crisis.”
Paul Preciado
Translated by Molly Stevens
LATE AFTERNOON CHAT
AFTER THREE YEARS WEEKS
IN EXILE
The waiters piling up the chairs
you looking at me and begging that I say
something Please Say Something Don’t Just Write
I’m avoiding the ticking of the clock that already
announce the already famous escaping
of our bodies each towards
opposite ends of the city – if our love were
a gun I’d be the grip and you the sight
like teacher Sofia Jones used to say
it is a terrible thing that two parallel lines never cross
paths they only meet in the infinite but the truth
is that the question of the infinite never really interested us but
the rest of mathematics sure did of course and in fact
I prefer a thousand times over your cup of tea cooling off
as you talk about square roots
as you talk about figs’ thieves
as you talk about the whale’s stumble
suddenly I don’t even know what it is that
you’re talking about
because the way your incisor tooth
cuts through and upholds all the beauty
in the café makes me understand once again
that the seventh day marks the cuckoo’s hour
and the cuckoo’s song and thus I hop on my bike
and as usual you sketch my portrait with my hair drawn
by the wind with this quality of a boy who’s always leaving
at the same time and that tomorrow if all goes well
he’ll be back at the same time to the same love the same table
the same explosion
indeed with the same escape
because you and I we are constituted
of the same slippery matter, i.e., butter,
olive oil, jam and awe.
Matilde Campilho
Translated by Daniela Castro