A ficção crua - 28a Bienal de São Paulo
2008
Deparei-me com uma estranha sensação de incredulidade sobre a verdadeira existência de meu interlocutor, ao me comunicar com a autora de Looking for Headless (Procurando Headless), a Sra. K.D. Ela expressa, nesta publicação, reflexões sobre sua temporária desistência como profissional do mundo financeiro para ocupar um lugar de autora ficcional. O livro ainda está inacabado, e discorre sobre o escritor John Barlow, encarregado de relatar a pesquisa que os artistas suecos Goldin e Senneby vêm executando, desde 2006, sobre paraísos fiscais.
Frente a tantas dobras ficcionais - uma autora que escreve um romance policial sobre um outro autor que relata a pesquisa dos artistas sobre esse aspecto quase invisível do mundo financeiro –, deparei-me com uma dúvida crucial; uma dúvida cujo esclarecimento não só poderia me dar pistas de como percorrer essas dobras, mas, mais importante ainda, revelaria a geografia do ponto de largada a partir do qual eu me permitiria ler Looking for Headless. Enviei-lhe um e-mail perguntando se ela era uma autora ficcional ou fictícia. Ela me respondeu: “Nem em sonho eu imaginaria um dia dizer: Eu sou real. E traz uma sensação agradável declará-lo. Um abraço. K.D.”. Achei muito estranho. Quem hoje em dia sai por aí declarando ser real? Pensei: deve ser mentira.
Goldin e Senneby pesquisam sobre uma companhia offshore (paraíso fiscal) chamada Headless, localizada nas Bahamas. Um breve esclarecimento: são chamados de paraísos fiscais estados ou regiões autônomas onde a lei facilita a aplicação de capitais, oferecendo uma espécie de desconto (dumping) fiscal. A legislação dos paraísos fiscais faz de tudo para proteger a identidade dos investidores e mantê-los no anonimato, além de não questionarem sobre a origem do dinheiro investido.
Se lermos atentamente esta definição, veremos que são companhias que operam legalmente com dinheiro das contas ditas “fantasmas” para onde são canalizados os recursos oriundos de diversos meios ilícitos, como corrupção político-administrativa e tráfico de drogas. Segundo Geoffrey Colin Powell, ex-Conselheiro Econômico de Nova Jersey, citado no The Economist, "o que identifica uma área como sendo 'paraíso fiscal' é a existência de um conjunto de medidas estruturais tributárias criadas deliberadamente para tirar vantagem de, e explorar a demanda mundial de oportunidades para se envolver em evasão tributária". O dado interessante dessa demarcação é que o economista não atribui um valor criminal ao investidor, mas aponta as oportunidades da evasão tributária como mecanismo estrutural para o funcionamento do sistema capitalista vigente. Pois se não fosse estrutural, não haveria uma “demanda mundial”.
Enfim, essa última sentença, chamada de linking sentence na estrutura do texto (a que conclui o parágrafo anterior e que gera uma nova discussão para o seguinte), tão curta e tão frágil para convencer o leitor sobre uma generalização à respeito dos códigos de funcionamento do capital hoje, não foi introduzida aqui sem uma razão. A fragilidade dessa sentença é a mesma com a qual autoridades internacionais tentam burlar as interpretações da Constituição Legislativa desses territórios no esforço de adquirir a quebra do sigilo bancário de alguns indivíduos “suspeitos” (lembremos o caso mais recente do que gostaríamos do nosso ex-prefeito Paulo Salim Maluf). Ademais, são países que se negam, com sucesso, a se dobrarem frente às jurisprudências do direito internacional, pois, por razões históricas locais, os paraísos fiscais foram estabelecidos como “exceções legais” que lhes permitem operar constitucionalmente na lógica da invisibilidade (a maioria dessas companhias, segundo Goldin e Senneby, estão localizadas em ex-colônias britânicas).
Mas por que é tão difícil intervir juridicamente ou regular oficialmente esse tipo de negócio? Porque podemos dizer que estas companhias são tanto literais quanto “literárias”; elas só são legais porque se valem de um paradoxo da linguagem que ocorre entre os limites da escrita (do texto) e as infinitas interpretações que esse limite proporciona (o movimento Dogma, de Lars Von Trier et. al., operou nesse registro limítrofe sobre a criação cinematográfica. “Discipline is freedom” eles costumavam dizer). Como os artistas uma vez colocaram, o que lhes interessa é gerar ficção da ficção crua do mundo; daquelas que já existem como forças organizadoras das nossas vidas e mentes; das ficções criadas a partir de interpretações que “flutuam” entre um conceito monolítico e outro, tais como o da Justiça, do Direito, da Democracia, da Liberdade e da Verdade.
O filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832), famoso por ter proposto um sistema carcerário que ele batizou de Panóptico[1], foi o primeiro a tratar da relação entre ficção e poder em inúmeros fragmentos escritos no período entre 1813 e 1815, mas que só foram publicados postumamente em 1932, sob o titulo de “Teoria da Ficção”. Esses ensaios não tratam da ficção na literatura, mas das “ficções legais”, e o espaço onde Bentham localiza sua investigação fica entre as “leis” da escrita e a escrita das Leis (“the ‘law’ of writing and the writing of the Law).
Esse espaço intervalar é enorme e invisível; um vazio imensurável preenchido por significações advindas de interesses políticos delirantes. É o espaço lingüístico do vazio das letras que lhes garantem a forma. Insistimos, porém, em ler apenas seus relevos, as linhas. As leis regulatórias interpretadas – Bentham diria “ficcionalizadas” – a partir do relevo, sem perceber esses vazios que lhes dão forma, garantem e justificam a impunidade e as investidas anti-ambientalista das grandes corporações, por exemplo, porque o sistema lingüístico, legislativo e sobretudo financeiro assim o permitem.
Pensemos um pouco nesse verbo “permitir”. Se analisarmos os mecanismos da ficção na literatura, facilmente concluiríamos que nos permitimos ser “enganados” o tempo todo. Quando Kafka diz que o jovem George Samsa acordou transformado num asqueroso e desprezível inseto, sabemos que isto é uma “mentira”. Mas também sabemos ser autêntico e legítimo o forte sentimento de auto-estranhamento, de inabilidade de pertencimento, desestabilização e extrema solidão. Ou seja, esse fato fictício, seguindo uma lógica metonímica, se transforma num imaginário real. Melhor ainda, a ficção nos seduz a pensar ser real. Na Grécia antiga, os retóricos diziam: não existe verdade, existe convencimento. A retórica preocupa-se com a armação da linguagem capaz de seduzir e convencer.
Já a ficção do poder ou “ficções legais”, ou ainda o que Goldin e Senneby chamam de ficção crua, substitui a sedução pela responsabilidade. Como resultado, vemos que a lógica metonímica se desfaz em uma antinomia moral entre Verdade e Mentira. Porém, antes de ser um impasse moral, o pólo verdade e mentira é um jogo conceitual, discursivo, pois instaura a dúvida sobre o que é verdade (real) e mentira (ficção). Para Flusser, "a dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, instituir-se como ‘ceticismo’, isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento, mas em dose excessiva paralisa toda atividade mental"[2].
A problematização e o esvaziamento do conceito de realidade acompanham o progresso, nessa medida perigoso, da dúvida. Então a ficção caminha assim: sozinha. Não acredito ser possível hoje sustentar a dicotomia realidade x ficção (o que aconteceu de fato em 11 de setembro de 2001 mesmo?), porque, nesse breve escrito, esse esforço é retórico. E se não o for, se cair num discurso “responsável”, arrisca-se insistir num exercício de uma dialética bêbada, de dedução da eternidade a partir do provisório. Torná-lo moral, usufruindo da, e seqüestrando a explícita idéia de ficção e realidade, inflaciona os valores e culmina numa recessão de convicções.
[1] O conceito do Panoptico é o de um design arquitetônico que propiciaria um sistema de observação (opticon) onde o observador seria capaz de vigiar todos (pan) os prisioneiros sem que esses percebessem se ou por quantas pessoas estavam sendo vigiados. Essa arquitetura de vigilância ofereceria um sentimento de uma onisciência invisível.
[2] Vilém Flusser, Da Religiosidade: a literatura e o senso de realidade. (SP: Escrituras, 2002) p. 47