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O que exatamente vocês fazem, quando fazem ou esperam fazer curadoria? - Editora Circuito

2008

Costumo brincar com os meus colegas escritores dizendo que os advérbios podem ser muito perversos. "Exatamente o que se faz”, o que se pensa exatamente quando se faz curadoria; aí está, nesta palavra, o ponto de interesse da pergunta, porque nada é "exatamente", quando se faz uma curadoria.

 

Algumas das coisas que vocês mencionaram me encorajam a responder das seguintes maneiras: primeiro, de um ponto de vista mais histórico, ou seja, tomando como ponte de partida a formação desse indivíduo que chamamos de curador; em seguida, a partir de questões mais pessoais, já que a pergunta pressupõe um “tu”; por fim, conceitualmente também, no sentido de pensar quais são as disciplinas envolvidas quando se faz curadoria.

 

Vocês falaram que tiveram um acompanhamento crítico durante um ano. Isto me remete a um fato que discutimos ontem. Brincávamos dizendo que o termo curador é quase como uma muleta linguística, porque tanto cada projeto curatorial é uma experiencia única, quanto existem vários formatos de curadoria. Por exemplo: curadoria de seminário, de moda, de uma antologia para livros... A curadoria que realizar uma exposição de arte contemporânea é só uma das possíveis atividades.

 

Desperta muito o meu interesse perceber duas características ao tentar entender melhor o perfil desse profissional: o fato de ser uma profissão que emergiu recentemente e a interdisciplinariedade inerente a ela. A necessidade que temos de classificar - não que eu acredite que é isso o procurado aqui –, a tentativa de isolar e definir qual é a tarefa do curador, considero um exercício que carrega certa obsolescência. Quando trabalhamos como curadores, lidamos diretamente com o artista. Só que isso não é um mero diálogo. Não são dois interlocutores: é uma conversa polifônica, porque nesta troca, compartilham-se múltiplos olhares. Olhamos com o nosso investimento pessoal, o carinho e admiração pelo trabalho e talento do artista; olhamos com o olhar da instituição, que é aquele espaço que vai abrigar o projeto; finalmente, olhamos com o olhar do público e o imaginamos sempre heterogêneo. Gosto da ezquizofrenia do trabalho de curadoria: trabalha-se sempre com o múltiplo, nunca com o individual, mesmo que seja uma exposição de um artista solo.

 

 

O escrever nunca se separa do trabalho do curador, porque curadoria é necessariamente um trabalho de escrita, entendida aqui na definição mais ampla possível e tomada do nosso amigo Derrida, para quem tudo é texto. A curadoria nasce da organização de um pensamento, que pode surgir de uma ideia que nos invade quando andamos na rua para fazer supermercado, ou quando observamos um trabalho, ou um conjunto de trabalhos, que nos move de uma certa maneira. Aquele pensamento nos habita por um tempo, até que sentimos a necessidade de desenvolvê-lo de uma maneira organizada e inusitada, de modo a apresentá-lo para outras pessoas. Não deixa de ser uma organização textual, com a diferença de que é apresentado em um espaço tridimensional e não no espaço da página. O texto evidentemente é sempre parte da curadoria, por isso não acredito em projetos curatoriais que não têm texto. Eu me lembro que tinha acabado de chegar no Brasil e comecei a visitar alguns projetos. Naquela época, era comum alguns colegas curadores serem convidados para fazer curadorias de recorte do acervo de galerias. Eu chegava e dizia: “que bacana, nossa, trabalhos legais, mas cadê o texto?” E eles respondiam: “não, não tem texto”. Eu retrucava: “ah, então é uma seleção e não uma curadoria?” E nesta hora já tinha queimado o meu filme. Enfim, teve gente que deixou de falar comigo. Por fim, naquele momento, pensei: “tá, entendi. Aquilo que seria mais próximo do marketing é uma outra forma de ‘curadoria’ do jeito como se entende por aqui”.

 

A curadoria é uma forma de escritura no espaço. Trabalhamos com os projetos artísticos como signos mesmo. Agora, imaginem as dificuldades e as delícias embutidas em escrever um texto, no qual cada projeto artístico é um signo lotado de possibilidades de significações. Esse é o tesão de fazer curadoria: escrever um texto, que para mim é quase como se fosse uma performance textual no espaço. E gostaria de complementar citando a ideia de colagem. Rosalind Kraus, por exemplo,  escreveu um artigo sobre a colagem dos artistas participantes do Dadaísmo em Berlim (muito diferente daquele na Suíça). Kraus argumenta que o método da colagem, ou fotomontagem, usado por Hannah Höch, John Heartfeld e outros consistia em um arranjo formal de clipes fotográficos, cuja mensagem se transmitia simultaneamente e não sucessivamente. Havia um jogo de equivalências horizontais de significações entre o que os clipes ainda remetiam como índice de seu lugar original e o todo no qual agora figura `a serviço da intenção do artista em construir novas significações.

 

Podemos pensar, então, que um curador faz uma colagem, e por que não uma montagem, de intenções e de ideias. Em função dos trabalhos artísticos, desses índices, serem apresentados de uma maneira direta, ocorrem equivalências de significações que são transmitidas simultaneamente. Evidentemente que essa simultaneidade não exclui o tempo de fruição de cada obra. Aqui, estou pensando espacialmente, na organização do projeto curatorial para uma arquitetura específica.  Fica claro, portanto, que curadoria é uma empresa coletiva, ponto final.

 

Passei por situações que demandaram uma maneira até lúdica de organizar o espaço. De qualquer modo, é um trabalho sempre em colaboração e isso é o mais interessante. Tendo a trabalhar com poucos artistas. Nunca fiz curadorias com mais de 6 artistas, porque realmente privilegio trocas entre indivíduos; trocas que sejam edificantes para todos nós. E divertidas:  to have fun é o mais importante, assim como o afeto entre os curadores, artistas e equipes de produção. O afeto com e no projeto, por sua vez, acredito, afeta o público de uma maneira contundente, também garantindo uma ética de trabalho. Mesmo uma curadoria com um maior número de artistas, na minha opinião, é esta ética do edificante que deve ser mantida.

 

A polêmica a respeito do poder do curador e da sua suposta mão pesada é muito mais da ordem do problema pessoal fantasiado de problema institucional. Porque há curadorias boas e curadorias ruins. Há profissionais éticos e profissionais que trabalham em benefício próprio para se autopromoverem, como acontece em qualquer carreira e em qualquer área. Há um dado histórico que consegui isolar na pesquisa para um curso que ministrei no Parque Lage, chamado Curadorismos. Na década de 1960-1970 aconteceu a emergência da arte conceitual  e das concepções de arte como filosofia, arte-pensamento, desmaterialização do objeto, etc. Nesta mesma época, a instituição se abriu como espaço legítimo de intervenção artística. Tanto espacialmente, quanto conceitualmente. Deste modo, a instituição vira tema de projetos artísticos de intervenções, tanto é que Andrea Fraser cunha o termo  "institucional critique"   - trabalhos que apontam para buracos, erros, enfim, intenções da  instituição-arte não percebidas “a olho nu”. O resultado constitui um espaço hermético: a produção artística feita para aquela instituição, que por sua vez se abre a fim de receber o projeto a respeito dela própria.

 

O que vemos aqui é um processo de subjetivização da instituição. Se o artista está dialogando com aquele espaço, com aquela entidade, através deste diálogo essa entidade se subjetiva. Ela se deixa intervir, mas também responde. Só que essa subjetividade não tem rosto. O curador surge como aquele que media e confere um rosto à instituição subjetivada. Ele está, entretanto, distante dela. Porque é um contratado, seja por ser um curador freelancer, ou mesmo se for um profissional da casa. O poder – pensando sempre no caso de ser um profissional ético e sério – não é adquirido ou conquistado pelo curador, é um poder que caiu em cima dessa figura. Este poder, porém, pode ser diluído, porque no fundo – tento evitar uma palavra, para não abrir uma caixa de Pandora – o que acontece é que essa instituição foi corporificada, certo? Em resumo, defendo que, a partir do momento no qual a instituição foi se subjetivando, ela recebe uma carga de "corporação". Uso esse termo conscientemente, passando pela idéia de “corporificação”, se fosse concluir rapidamente esse raciocínio, chegando `a provocação da carga comercial que o termo implica. Esse “comércio” não se restringe ao mercado da arte, mas a todos os valores agregados ao tal “mundo da arte’, como o valor – por vezes monetário – do status do indivíduo (artista, curador, critico, etc.); o valor do “nome”...valores tão imateriais e especulativos quanto os  da economia neoliberal. Ou seja, essa problemática do poder é muito mais complexa e abrange o papel de cada indivíduo profissional do meio artístico.

 

Gostaria agora de abordar outra questão, que surgiu ontem no debate no Teatro de Arena/Capacete que achei importante, embora não saiba se vocês conseguirão aproveitar, dada a especificidade do questionamento que levantarei. Ontem mesmo, eu falava que arriscaria uma fala um pouco mais panfletária, porque o problema  das instituições culturais no país é antigo e trava o trabalho de todo mundo, sobretudo. Com a apresentação ontem da Sara Farrer e do Inti Guerrero ficou muito evidente, da experiência deles na Nova Zelândia e em Amsterdam, no De Appel –  onde as instituições culturais são mais saudáveis – que um buraco de intenções nos separa, na verdade resultado da estrutura da nossa política cultural. Notadamente, penso no fato de que, creio que se trata de uma herança do Brasil-colônia-ditatorial, as instituições de cultura são administradas por diretores nomeados pela Secretaria de Cultura como cargo de confiança, mas sem regulamentação, nem tempo de gestão estabelecidos. Percebo que existe um exército de pessoas que mostram interesse em trabalhar com questões de curadoria sofisticadas, que dizem respeito à elaboração de um texto, à pesquisa histórica e/ou teórica contemporânea; curadorias não deixam de ser, eu dizia no curso que ministrei, termômetros sociais e culturais. Se prestarmos atenção às curadorias que aconteceram na metade do século XX, é impressionante como tem tanta coisa embutida nelas que podemos destrinchar e a partir disto enxergar questões históricas, sociais, econômicas e artísticas de seu respectivo momento. Logo, aqui no Brasil, estas questões importantes ficam `a mercê de uma estrutura jurássica que permite que uma pessoa pessimamente qualificada dirija uma instituição há quase vinte anos ininterruptamente, por exemplo.

 

No caso de São Paulo, há uma pessoa dirigindo duas instituições. Existem seis grandes instituições de arte contemporânea em São Paulo e duas são dirigidas por uma mesma pessoa! É muitíssimo grave, é anacrônico e um desserviço, pois são sob esse modelo que valores culturais estão sendo criados e a memória cultural de um país está sendo construída. Falo isso por ser paulista, mas arriscaria estender minha leitura a toda e qualquer instituição de cultura do Brasil. Tais práticas que mais se assemelham ao funcionalismo público e ainda por cima com um tom de autopromoção e uma ganância torta por poder, vão contra qualquer tipo de método de criação artística e produção de conhecimento sérios. Isso acaba por corromper até o fazer artístico. Estamos em um momento interessante e urgente para que falemos disto, pois estamos passando por uma máxima revisão e transformação no mundo inteiro: uma reorganização geopolítica radical da qual faz parte o Brasil, por ser um dos países que desponta como potência econômica. O debate sobre a cultura se reduziu à bandeira partidária fim-de-linha – pudemos acompanhá-lo em jornais como a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo – para que os políticos fiquem competindo para sabermos em qual mandato se investiu mais em cultura. Perdeu-se a noção da importância de se trabalhar na cultura; perdeu-se a noção da importância da produção cultural como aquilo que gera estofo emocional, psicológico, o que seja, para as dificuldades e os riscos que dizem respeito a estar no mundo.

 

O afeto para mim é o mais importante. O risco é inerente à vida; o risco de depositarmos amor numa pessoa, num trabalho, num projeto. Não um risco conceitualizado, algo como “o risco na arte contemporânea...” Não! É o risco de se deixar vulnerável ao outro. Na ‘empresa coletiva’ que é a curadoria, é a confiança de que a abertura ao outro será tal e qual a abertura que depositaremos nesse projeto coletivo. Portanto, não me agradam projetos cuja ideia curatorial é um "guarda-chuva", na qual os trabalhos são envolvidos e achatados a partir de um conceito prévio, mas sim as ideias curatoriais "chão", a partir das quais os trabalhos emergem individualmente, embora conectados uns aos outros por estarem num mesmo espaço e a partir das leituras que lhes forem conferidas pelo público.

 

Nós, que discutimos sobre curadoria, também visitamos exposições e desempenhamos o papel de público. E são raras – a não ser as curadorias grandonas, sobretudo as da década de 90 – as vezes em que entramos numa exposicão e falamos: “puxa vida, não consegui ver trabalho nenhum porque a mão do curador é pesada”. É evidente que exposições como Les Magiciens de la terra, Primitives, ou Brasil Body and Soul assassinam tudo. No entanto, são trabalhos, signos, e é claro que falam por si só, sempre. Há um outro risco: em meio a um mundi altamente complexo, acho que em vários momentos nós dramatizamos muito os problemas, que são na verdade bem mais simples do que pensávamos.

 

Arriscando grosseiramente uma generalização da experiência de vocês no Museu de Arte da Pampulha, o curador estava ligado à instituição. Esse é um exemplo que ilustra o que eu estava dizendo, de um ponto de vista histórico, a respeito da origem da confusão de poderes. Porque esse profissional tem que suprir o programa da instituição como lhe foi colocado e ao mesmo tempo dar conta de dez pessoas pensantes, sendo também capaz de servir como ponto de embate. O ponto de embate, aliás, é outro elemento instigante da atividade de curadoria. Na medida em que um curador o encarna, ele necessariamente desiste do limite das suas certezas e das suas razões. É um processo de abertura. Não se trata, contudo,  de uma questão de julgar. Não acredito em julgamentos tais como: “esse trabalho funciona ou não funciona, é ruim ou é bom”. Não existe isso: é aposta fácil, é uma crítica fácil e burra. O curador se traveste o tempo todo, porque o que ele faz consiste em tentar alcançar a intenção do outro, inclusive o outro-instituição. E aí, sim, você investe aquilo que conquistou em termos de conhecimento, pensamento, sensações, tudo que permita a troca de ideias. Quando vimos o seu filme, Pablo, por exemplo, ocorreu uma conversa mais ou menos nestes termos: “olha, me parece que o impacto seria mais legal desse jeito do que como está, etc.”.

 

Ocorrem-me duas coisas no que você falou, Yuri, que me lembra um filósofo contemporâneo Francês que o Pablo mencionou numa das nossas primeiras conversas. Michel Onfray defende a razão da convicção sobre a razão da responsabilidade, por esta última estar necessariamente ligada a valores dicotômicos advindos de uma lógica moderna em crise. A razão da convicção favorece uma ética individual pautada pela dialética a partir do corpo coletivo, ao contrário da responsabilidade, que pressupõe obediência `a organização e regulamentação social do coletivo.

 

Uma das delícias de atuar no campo da curadoria é que podemos partir da lógica da convicção e não da responsabilidade. Na responsabilidade, já está embutida a questão moral de certo/errado, bom/ruim. Na convicção, não. Ela é alegre. A responsabilidade é do campo da honra, que sempre tem um resquício de poder embutido; honra que inclusive, como diz nosso amigo Barthes, pode ser imerecida, como a de alguns curadores, ou dos profissionais cretinos. A convicção e a alegria são sempre políticas; ambas são dos profissionais que querem o ‘to have fun’ edificante e ético, procurando fazer um trabalho contundente; amoroso e afetuoso.

 

Pensar o que é curadoria no Brasil, hoje? Vamos refletir sobre essa sentença. Passamos por um momento de transformação, cuja base é a crise do Estado-Nação. Sabe o que está errado nessa pergunta? Tudo. Porque o que é curadoria, já vimos: um octopus fagocitoide, cujos limites não é possível traçar. É como se perguntássemos: o que é o Brasil hoje? Atualmente, temos a oportunidade de trocar todos os valores. É um momento legal por um lado, mas assustador e frustrante por outro, porque tem muita merda acontecendo. Citamos, por exemplo, as anacronias ainda existentes. No entanto, têm surgido oportunidades de traçarmos novos valores. Desta forma, a questão da aproximação com diferentes curadores é fundamental. Imaginem só, vocês vão sentar com mais de uma dezena de indivíduos e trocar ideias na casa deles! Isso vai gerar um material e tanto, extremamente diversificado e rico. Morro de medo quando ouço alguém tentando definir ou descobrir o que é curadoria no Brasil, hoje. Não sei se é possível fazê-lo e considero um pouco perda de tempo: é um pensamento burocrático, arquivista e não precisamos mais disso.

 

Trabalhamos no mundo inteiro, hoje em dia. Todos nós. O que torna mais difícil essa resposta.

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