Prefácio - CADERNO Videobrasil
2009
EARTH PIECE
Listen to the sound of the earth turning.
Yoko Ono, 1963 spring
Este texto parte de um lugar “errado”. O “certo” seria que o prefácio estivesse no começo, produzido a propósito de um discurso que antecede e introduz.
Em seu Fenomenologia do Espírito, Hegel inicia dizendo: “Não me levem à sério no prefácio. O real trabalho filosófico é aquilo que acabei de escrever, a Fenomenologia do Espírito. E se eu lhes falo fora do que escrevi, esses comentários à margem não têm o valor do trabalho em si...Não levem o prefácio a sério. O prefácio anuncia um projeto, e um projeto não é nada até ser realizado”[1].
À margem e fora. Para Hegel, e outros defensores da autoridade do texto, existe portanto um dentro – o livro –, mas que é enformado pelas suas margens, e qualquer comunicação periférica que se enuncia fora desse corpo de conhecimento não alcança a legitimidade de seu discurso original.
O prefácio, a título de apresentação, é aquilo que se diz a priori. Entretanto, seja de punho do próprio autor do livro, seja de um outro autor, o prefácio é construído após a leitura do texto, isto é, retrospectivamente. Hegel refletiu acerca de seu texto em retrospecto para escrever sua introdução. O prefácio parte do fim para o começo. E a partir desse movimento elíptico – e não circular, como talvez quisesse o filósofo da totalidade, mas com curvas –, o prefácio é uma forma de re(a)presentação.
Talvez seja a representação do discurso, ou melhor, a autonomia que essa representação sustenta no livro, o objeto chamado em juízo para responder. Segundo a crítica literária Gayatri Spivak, o prefácio anuncia uma tácita aceitação da ficção dentro do discurso original. Quase literalmente, esse gênero produz um conhecimento colateral. Para Spivak, essa co-lateralidade - a margem do projeto ocidental, e que ainda anuncia a marca do ilegítimo ou da exclusão -, é chamada de frustração em seu A Critique of Postcolonial Reason[2]. O intelectual, que se dedica ao que vem recebendo o nome de “teorias de resistência” – o feminismo, pós-colonial, queer, racial – vê ruir a arquitetura iluminista-cartesiana quando parte da legitimação de um paradigma para clamar seu direito à fala, quando o interpela para instaurar-se dentro dele e garantir um reconhecimento.
A corrosiva pergunta postulada em 1971 pela historiadora da arte Linda Nochlin, em seu artigo Why Have There Been No Great Women Artists? já demonstrava que o potencial de emancipação feminista permanecia cegamente preso ao universo moral patriarcal[3]: “A primeira reação das feministas é engolir a isca, o anzol, a linha e o chumbo, e procurar responder o problema da forma como ele é dado”, isto é, trocar saias por gravatas ou só realizar projetos artísticos que conceituem a exterioridade como um problema “essencial”. Nochlin apontou que essa questão vigora dentro dos mecanismos de institucionalização da arte, de como seus códigos são escritos.
Irônico o presente Prefácio situar-se no meio. Não interpela, não clama pelo seu direito à fala partindo de um lugar marginal, mas insere sua fala no miolo e na gema do caderno, se assume explicitamente como representação dentro, entre-linhas. Lévinas menciona o falar (le dire, lo decir, saying) como verbo de ação, “enquanto apresentação e linguagem própria do Outro mediante sua situação corporal atual, dentro de suas possibilidades de um efetivo traumatismo – interpolação, cesura – de modo diferente daquilo que é falado (le dit, o dito, said), como gritos que anunciam fatos, coisas, significados”[4]. Assim, do substantivo ao verbo, do lugar “certo” ao lugar “errado”, usaremos o silêncio e seus ruídos como signos de pontuação, como algo que é capaz de falar o que talvez não tenha sido ainda escutado.
...
O que se ouve em Rewane’s Song (2006), da artista Mourina Al Solh, é o som de seus passos vestidos de salto-alto vermelho. O vídeo inicia-se como uma afirmação da negação de estratégias político-identitárias de uma suposta feminilidade oriental arquetípica, que daria voz a uma qualificação única de alteridade fixada em questões de geografia e de gênero.
A primeira sequência apresenta um texto que informa o espectador sobre a frustração da narradora habitar os variados arquétipos de uma identidade libanesa imposta por uma condição geográfica de nascimento. A errância de seus passos na tentativa de provar o que ela não é – 1) Nothing to say about the war; 2) Don’t feel that I am typical Lebanese; 3) Nor typical Arab; 4) Have nothing to do with Phoenicians; 5) Not ready to defend the Palestinian cause; 6) Know almost nothing about politics; 7) Often contradict myself [5]- nos leva a seus passaportes azul e vermelho, que, somados ao intervalo branco, pontua o assovio inequívoco da Marseillaise.
É por essa viagem entre os clichês da identidade colonial (Mourina deixa claro no vídeo que o Líbano não é uma colônia da França, e sim um protetorado) que uma intraduzível linguagem surge para questionar a absolutização fetichista de um sistema lingüístico, escrito e oral, e gestual. Somos transportados para além da inteligibilidade das palavras, pelo caminho da ironia sobre o significado de uma exterioridade, de uma diferência. A ironia é uma forma de tomar distância, e como instrumento analítico operativo, instaura uma pausa reflexiva entre dois atos íntimos: para o ser irônico é necessário a presença do outro que escuta, do outro que entende, do outro que seja disponível ainda somente para olhar, num processo mútuo de reconhecimento daquilo que está sendo ironizado. Sendo assim, a ironia se reconhece como parcial e faz reconhecer a parcialidade no outro.
Após variadas tentativas de escrever um livro, dirigir um documentário ou produzir uma ópera que remetessem à guerra, Mourina ainda se vê incapaz de cumprir as demandas da arte ocidental por um exotismo qualquer. Tenta, então, realizar um projeto em que convida 100 mulheres libanesas para cantar um trecho de suas músicas favoritas. Mas, para sua decepção, nenhuma das vozes gravadas nas duas fitas-cassete, estampadas com a foto do passaporte da artista, cantam sobre a guerra. Elas cantam sobre o amor. Ouvimos apenas a voz da fictícia Rewane, karaoquizando o ícone pop-brega Nancy Ajram.
Aqui vemos uma ironia a(r)madora, que sustenta uma implicância com o estabelecido, com as estratégias de legalização e autenticidade. As questões identitárias, pautadas por problemas de dominação/submissão cultural se moldaram em determinado tempo no audiovisual como estratégias de inserção de vozes dissonantes. Mas a ironia não clama o original; ela funciona no registro da repetição do óbvio, portanto diferenciando-o, e com uma certa carga de ineditismo. O prefácio é também o óbvio, na medida em que repete retrospectivamente aquilo que antecedera; o óbvio sendo representado. Walter Benjamin, discorrendo sobre o trabalho de Mondrian, conclui que as cópias das pinturas do artista são mais complexas à respeito de sua significação do que o original. É a repetição, e não o objeto em si, que nos livra de um pressuposto universal e levanta questões de lugar, identidade e linguagem[6].
Por exemplo, os filmes de Nobuhiro Suwa, que tratam repetidamente do amor. São filmes exigentes em relação à cumplicidade do espectador, com sequências tão dilatadas, tão silenciosas, que o clássico plano/contra-plano parece se esvaecer em planos singulares. O cinema de Suwa trabalha contra o plano – contra sua estabilidade e integridade – como em M/Other (1999), mas também a partir dele – a partir da solidez e frontalidade do plano fixo em Un Couple Parfait (2005). Este último, realizado em Paris, é um projeto colaborativo entre o cineasta nascido em Hiroshima, uma atriz ítalo-francesa e um ator suíço, com a participação de um tradutor franco-japonês no set mediando a comunicação entre as partes à respeito de um tema potencialmente universal. Essa estrutura que perpassa uma variedade de coordenadas identitárias e se corresponde entre diferentes linguagens (línguas, textos, culturas, imagens) complica a macro geografia do discurso totalitário. Lança a questão do lugar e do alcance de seus ecos. A alteridade não é localizada à margem, não se afirma o fora, mas dentro da dinâmica privada do casal, na presença constante do outro, do diferente sem intervalos e sem descanso.
A temporalidade dilatada nos filmes cria um espaço de um sempre-presente. Suwa não trabalha com um roteiro pré-estabelecido e sim com a improvisação dos atores: não o interessa o script, o passado, por ilustre que tivesse sido, que levou o casal modelo de Un Couple Parfait a decidir se separar. Não é o espaço narrativo, e sim um espaço de enfrentamento múltiplo ao constante processo vertiginoso da inconclusão, que parece afetar por igual o diretor, os personagens fictícios e o espectador, resultando em um nivelamento radical entre todos os indivíduos.
A câmera fixa por longos minutos na fechadura da porta que divide o quarto de hotel em que o casal se parte e se enclausura, enuncia uma linguagem instável e insuficiente que escorre com dificuldade quando não se trata mais de uma relação entre homem e mulher, e sim de duas singularidades que se molestam - e assim se desmascara o delírio que viu em seu par um ser amado. Uma vez esgotada a possibilidade de se alojar em seu outro, de torcer a identidade, a linguagem como tentativa de reescrever o pacto se torna contingente. Vê-se um silêncio ensurdecedor.
Os desenfoques emocionais dos casais têm seu reflexo extraviado. A medida que as imagens mostram a crescente tensão em M/Other, porque o filho do parceiro de Aki permanece em sua casa por uns meses, ouvimos um violino estridente, um rasgo sonoro fatalista que anuncia a degradação. Medidor de um tempo que nos torna dolorosamente conscientes e diapasão que determina o ritmo fílmico, o som do violino começa a dar forma ao vislumbre de uma melodia, afinando-se com a situação do casal.
Nos filmes de Suwa, o espaço é delineado pela medida do singular – sem gênero, nem grau, mas em infinitos números – encarando a difícil tarefa de outrar-se. Não é enquadrado pelas coordenadas estabelecidas de um eu original cuja constituição e manutenção necessita da exterioridade do outro. Os pactos sociais desfeitos denunciam a exaustão do contrato padrão de homem/mulher em uma ética não mais pautada pela comunicação entre gêneros. A crise amorosa formalizada por Suwa indica uma crise no discurso.
A tradução plástica das aventuras e desventuras psicológicas e sentimentais do amor que seqüestram a todos nós, diretor, personagens, atores, espectadores, produtores, leitores, escritores - de prefácios ou não -, a própria linguagem, artistas, ..., tem como contrapartida a vocação de escutar o presente. “Listen to the sound of the earth turning”, escute o som da terra girando, nos instrui Yoko Ono. E perceba que não há um projeto a se anunciar, a se repetir, a se concluir fora de si mesmo. Como um prefácio, ele expõe mas não resolve; interpolado, ele solve, dissolve, e alude a um projeto ainda em processo de ser reescrito.
Por Daniela Castro e Lucas Bambozzi
[1] Citado em Gayatri Spivak , “Translator’s Preface”. In Jacques Derrida, Of Gramatology. Trans. Gayatri Chakravorty Spivak (Baltimore: The John Hopkins University Press, 1976). Pág. x
[2] Ibid, A Critique of Postcolonial Reason: Toward a History of the Vanishing Present (Cambridge and London: Harvard University Press, 1999)
[3] Primeiramente publicado em Linda Nochlin, "Why Have There Been No Great Women Artists?" ARTnews January 1971: 22-39. Utilizado pelos autores na versão online http://www.fehe.org/index.php?id=686
[4] Emmanuel Lévinas, Autrement qu’Etre ou au-delà de l’essence (Paris: Livre Poche, 1990), citado em Enrique Dussel, Filosofia da Libertação: Crítica à ideologia da exclusão (São Paulo: Paulus Editora, 1995). Pág. 147.
[5] 1) Nada a dizer sobre a guerra; 2) Não me sinto tipicamente libanesa ; 3) Nem tipicamente árabe; 4) Não tenho nada a ver com fenícios; 5) Não estou preparada para defender a causa palestina; 6) Não sei nada sobre política; 7) Vivo me contradizendo. Tradução emprestada das legendas em português do vídeo.
[6] Walter Benjamin, “Mondrian ’63–’96”. Manuscrito da palestra ministrada na Cankarjev Dom, Ljubljana, 1986, organizada pela ŠKUC Gallery. Citado em Zdenka Badovinac, What Will the Next Revolution Be Like? Trans. Rawley Grau. e-flux journal, 2009.