Sobre a escuta - Meta-Arquivo: 1964-1985: Espaço de Escuta e Leitura de Histórias da Ditadura Sesc - SP
2018
Sobre a escuta: o som não tem face oculta e os ouvidos não têm pálpebras
O som não tem face oculta. Está diante atrás dos lados dentro fora.
Escutar não é compreender, há quem confunda os dois. Escutar é estar presente com aquilo que emite o som, que é seu primeiro receptor. Escutar é partilha.
A imagem é evidência (videre, ver), o som é ressonância. Escutar vem de auscultare, “prestar ouvidos”, “escutar atentamente”; o dar ouvidos evoca uma intensificação e um cuidado, uma curiosidade ou uma inquietude.
Os ouvidos não têm pálpebras.
O olho alcança a visão de algo no horizonte a 12 km de distância, nada além. Daqui da nossa latitude, o som vem com o vento leste desde a África e, com ele, gira a Terra toda.
Pessoas podem ser punidas ou torturadas pelo que falam, mas não há como saber o que faz o indivíduo com aquilo que ouve. Quando se tenta extraí-lo à força, gera cegueira.
Quando se emite um som a partir da fala, ou murmúrio, a vibração das cordas vocais aquece os órgãos internos do corpo. Esse calor é sentido em quem ouve. Ora acalenta, ora fulmina. Queima.
Escutar não pode ser adjetivado, e não deve (nunca) ser predicado. Predicar a escuta configura totalitarismo.
“Estar à escuta” já foi um termo para espionagem militar. Os gritos de W confundiam-se com o som do rádio.
O silêncio das instalações de um arquivo público é pura latência sonora. Testemunhos de vozes: escritos, transcritos, gravados, filmados, ossificados. Ressoam e reverberam. As traças não comem som.
“Escuta! Você sabe com quem está falando?!”: não gera escuta, trata-se de histeria elitista viril.
Em 2017, na série Fruto estranho da Flip, Adelaide Ivánova lê para o público três poemas: mimimi, para laura e sobre uma foto no huffington post, em 01 de novembro de 2015. O primeiro entrecorta os demais e consiste numa espécie de jamming com o livro Diante da dor dos outros, de Susan Sontag. Para cada citação de Sontag, Adelaide narra imagens de mulheres vítimas de feminicídio ao longo da história do Brasil, seja pelo Estado, seja por outros homens. E pontua que, para casos cuja imagem não existe ou não está disponível on-line, o feminicídio é questionado. Mas na performance, a poeta narra-os em voz alta, e os assassinatos dessas mulheres, mesmo que os olhos não possam ver, reverberam no corpo (social) pela voz de Adelaide, no presente do hoje, do passado e após. (Poesia é texto-fala-escuta ao mesmo tempo).
A presença visual já está ali antes que a veja, enquanto a presença sonora chega: comporta um ataque (como dizem os músicos e os especialistas em acústica). O poema musicado Gritaram-me negra, de Victoria Santa Cruz, ataca desde 1978 até sempre.
A escuta, ou estar à escuta, conclama uma presença aberta e abridora. Ela protege de hipervisibilidades e de imediatismos. Na opacidade do nevoeiro, a pessoa orienta-se pelo som.
O ouvido está sempre aberto, sempre multiplicando a singularidade de percepção na pluralidade da experiência.
O “t” do tum-tum-tum no coração transplantado do filósofo, por acidente de lugar, intercambia-se com o “m” de “meu”, um ora m/eu, ora t/eu – no tum-tum-tum ritmado – que se torna não um “nós”, mas um com(um)igo, um encontro que ressoa de dentro-fora-dentro, dentro. Um comum, uma população.
Ouve-se a própria voz ao escrever. Ao ler, ouve-se a própria voz como ressonanciação da voz de quem escreveu.
Esse filósofo escreveu um texto chamado “À escuta”, e outro chamado “O intruso”, entre outros.
O som é sempre intruso, pois o ouvido não pisca como o olho que quer interromper os signos de uma imagem que o agride. Portanto, o som é sempre um outro que reverbera dentro de mim e de si. Esse som intruso desarranja a reflexibilidade do pronome, ou ainda, a estrutura esquemática da língua (ocidental e as ocidentalizadas) que divide o si do mim. Escutar é estar ao mesmo tempo fora e dentro, e estar aberto de fora e de dentro, de um a outro e, portanto, de um no outro.
(por isso, Clara, compreendo teu silêncio. Pertence a uma linguagem sensível e individual que as palavras não traduzem. Nem pra outras línguas, nem em outros sons)
O lugar de fala pressupõe um espaço de escuta. Vamos falar disso. Cuidarmo-nos é ouvirmo-nos. Há fala, historicamente, que silencia e/ou amordaça o outro. Fala de ordem, fala de poder, fala capitalista. A escuta é comunista.
Escutar é da ordem de um presente em onda, não de um ponto numa linha, é um tempo que se abre, se escava, se alarga e ramifica. O som provém e dilata-se, ou difere-se e transfere-se. A escuta forma, assim, condição sensível de partilha de um dentro/fora, divisão e participação, desconexão e contágio.
Atadura e Multidão
Com esforço e atenção, carinho e dedicação, conseguimos escutar quando as tarântulas choram, ou quando rompe um novo abacateiro de dentro da sua semente.
Dedico este texto a minha querida Regina Melim (de quem recebo parceria e inspiração) e a tantxs outrxs que receberam a notícia cifrada sobre a morte de Carlos Marighella numa partida de futebol em 1969. E a minha querida amiga Raquel Garbelotti, que me lembrou que ainda há prazer no escrever, hoje. À Ana Pato, que, com afeto, me convidou para escutar o processo da exposição, e aos artistas, que se dispuseram a estar presentes no reenvio e no encontro.
FREI Betto. Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. São Paulo: Civilização Brasileira, 1982.
IVÁNOVA, Adelaide. mimimi. Performance realizada por ocasião da série Fruto estranho da Flip 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sameT-Ia618.
______. “para laura”. In: O martelo. Rio de Janeiro: Editorial Garupa, 2017.
______. “sobre uma foto no huffington post, em 01 de novembro de 2015”. In: vodcabarata.blogspot.com, blog da poeta. Publicado em 1 de novembro de 2015.
NANCY, Jean-Luc. À escuta. Tradução de Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Edições Chão da Feira, 2014.
______. L’Intrus. Tradução de Susan Hanson. Université de Strasbourg, 2002.
SANTA CRUZ, Victoria. Gritaram-me negra, 1978.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.