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Um loop perfeito - Revista Trópico

2012

“Uma história radicalmente condensada da vida pós-industrial

 

Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada. Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando direto para a frente, com a mesma contração no rosto.

 

O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava para conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal, não é mesmo não é mesmo não é mesmo.”

 

David Foster Wallace, Breves Entrevistas com Homens Hediondos. Trad. José Rubens Siqueira, 2005 (1a edição no original em inglês, 1999)

 

“The present is harder to find. It is being sucked out of the world to make way for the future of uncontrolled markets and huge investment potential. The future becomes insistent. This is why something will happen soon, maybe today.”

Don DeLillo, Comsmopolis, 2003




A vida pós-industrial da primeira epígrafe-conto é o agora, o presente. É o mesmo presente difícil de encontrar, apalpar – o da segunda epígrafe – “porque está sendo ejetado do mundo para dar lugar ao futuro insistente do mercado descontrolado e de imenso potencial de investimentos. É por isso que algo está para acontecer a qualquer momento, talvez hoje mesmo”. 

 

A constatação de Vija Kinski, Gerente de Teoria (Chief of Theory) da personagem central de Cosmopolis, o jovem e  trilhardário consultor financeiro Eric Parcker, se revela a partir de uma tontura familiar. Ela afirma o esvaziamento do presente, ou sua carga de especulação sempre projetada para um futuro pretensiosamente previsível, mas aponta para as consequências desse exercício de pura ansiedade no hoje. Um loop perfeito, sem passado: o vídeo ou filme que pegamos pelo meio numa exposição de arte contemporânea não se mostra como uma perda da parte não vivida, mas enuncia o futuro do seu re-começo no instante em que se adentra a instalação.  

 

Esta tontura conhecida não nos abandona enquanto navegamos pela 29a Bienal de São Paulo. A arquitetura errante da exposição nos é oferecida como um arquipélago com centenas de “ilhas” a serem visitadas –trabalhos artísticos de indiscutível qualidade selecionados sob a rubrica da “arte e política”, que exigem tempo, envolvimento e atenção para serem absorvidos.

 

A linha narrativa de Cosmopolis marca a esquizofrenia do capital especulativo na aurora daquilo que veio a culminar na crise econômica mais severa da história que vemos hoje, a queda do iene, em 2000. Trata-se da navegação errática de Parcker pela ilha de Manhattan dentro de sua limusine altamente equipada com dispositivos de segurança e de bem-estar, durante um período de 12 horas de um dia qualquer de abril do primeiro ano do século 21, no intuito de conseguir um corte de cabelo. Entre gráficos de bolsas de valores e em constante movimento, o consultor assiste centenas de milhões de dólares escoarem na medida em que o iene despenca e afeta a economia no mundo todo; tem encontros sexuais com sua amante galerista; encara reuniões com vários membros de sua equipe; vê sua limusine danificada por um protesto anarquista contra a reunião do G8 e cinicamente regozija com a passeata que exibe o caixão de seu cantor de rap favorito. 

 

No centro da ficção-científica blasé de DeLillo está um orquestrado desejo de profundidade por parte do autor e de suas personagens, conseguindo alcançar apenas uma superficialidade roteirizável que acompanha o ritmo da flutuação especulativa do capital imaterial e da especulação lingüística. O livro apresenta uma economia radical de vírgulas (pausa, respiro, contemplação), e os pontos de interrogação (dúvidas, questionamentos) são  substituídos por pontos finais, numa linguagem seca e rígida. O clímax da narrativa se resume ao personagem ter de conviver com o fato de que sua próstata é assimétrica, qualidade que partilha com seu assassino, o lunático Benno Levin, numa conclusão previsível e banhada a testosterona. 

 

A metáfora que se lança em jogo é o esvaziamento do indivíduo de sua carga subjetiva para um corpo depositário de informação infinita, pois vemos a substituição na narrativa do livre arbítrio pela arbitrariedade. O deslocamento incerto, ou mobilidade, é condição paradigmática do livro, bem como o é a condição da vida pós-industrial neoliberal. 

 

Em tempos que marcam um limbo de emergências (política, ecológica, psico-social) e o desconforto pelo atropelamento constante do devir, há uma patológica explosão de paradigmas simultâneos contra os quais julgar nossa posição no mundo. Tudo se relativiza e se negocia no trânsito errático entre a herança do insistente “universal” (estado-nação) e o seu sinônimo daltônico (crise congênita do estado-nação), o “global”. As bandeiras de "Apolítico" (2000), de Wilfredo Prieto, timidamente instaladas no exterior do pavilhão de Niemeyer, atestam a coreografia hereditária da verticalidade dos postes firmes e dos rituais oficiais rígidos de outrora. Na instalação do artista cubano, o “global” não se manifesta como uma ruptura com seu passado totalitário, bipolarizado e bélico, e sim como uma continuação lógica, mesmo que com menos definição e mais arbitrária, de seu irmão “universal” moderno.

 

As bandeiras estão hasteadas em preto e branco, desprovidas de cor que carimbariam diferenças, fronteiras e valores nacionais. Ao invés de aludir à uma arquitetura globalizada -marcada pelo desejo politicamente correto pela horizontalidade, pela igualdade e pela ideia de comunidade–, elas explicitam o estereótipo, ou seja, a desengonçada indefinição de códigos de diferenciações culturais, seguido da insegurança violenta frente à constante ameaça da homogeneização identitária ocidental.

 

Daltônicas, sem as cores que garantem a distinção entre as formas, as bandeiras da França pseudodemocrática de Sarkozy e da Itália fascista de Berlusconi são as mesmas. O internacional deu lugar ao “internacionalismo”, já que o livre-arbítrio foi substituído pela arbitrariedade.

 

Sem querer abrir uma caixa de Pandora, dado o perfil heterogêneo do público globalizado da Bienal de São Paulo e (talvez) demandas institucionais menos heterogêneas, mas igualmente globais (lê-se “internacionais”), o vídeo comissionado Opus 666 do projeto Pixação SP é simultaneamente grosseiro e apaziguador, alentador e assistencialista,  necessário e desprezível, justo e estúpido.  Como resultado do excesso de agendas a serem cumpridas e de especulação de significações possíveis, o ato se neutraliza e se esvazia (não o ato da pixação em si, ou a suposta relevância daquilo que se convencionalizou chamar de “arte de rua”, mas a escolha de apresentar essa documentação na mostra). Desmaterializa-se; torna-se arbitrário. 

 

Em exposições de portes físico e orçamentário gigantescos como as bienais é difícil assegurar a autonomia da arte. Sobretudo quando, em artigos publicados no caderno de cultura dos principais jornais do país, o presidente da Fundação e membro do conselho equalizam a importância de um evento de arte contemporânea com a imagem de um “novo Brasil”, em que a arte confere “riquezas e oportunidades”, atua como um “termômetro da economia”, “gerando progresso e benefício para todos”, que “mais cedo do que tarde, mais empresas brasileiras descobrirão como arte é um excelente investimento financeiro e social” e que “[A] indústria cultural brasileira terá papel fundamental no nosso desempenho na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio.” 

 

Evidentemente que a esfera econômica é um dos aspectos envolvidos na construção de uma Bienal, mas o problema é quando ela se torna um dos paradigmas de fruição das obras. O excesso como tomada conceitual da carga política contida na arte se traduz no pavilhão como a lógica corrente da hiper-expressão do capital e da hiper-estimulação da atenção e dos sentidos, resultando no atrofiamento da habilidade de interpretar criticamente o discurso proposto. Essa explosão de símbolos na presente edição –  arte e política, arte e mercado, arte e investimento, intercambiantes entre si – nos remete justamente à arquitetura do loop perfeito: o “Brasil país do futuro”, slogan vociferado desde um país ditatorial, é o hoje – o presente difícil de encontrar e de apalpar, cujo passado de violência, revolução e contra-cultura é sequestrado pela atualidade e transformado em valor de marketing na corrida pelas eleições. 

 

Static (2009), do britânico Steve McQueen  ilustra com brilhantismo o processo da alienação contemporânea. Com uma câmera 35mm, o artista sobrevoa em um helicóptero a Estátua da Liberdade, revelando detalhes inéditos do monumento. O ritmo circular, repetitivo e estonteante do percurso aéreo  insiste na exposição de todos os pontos de vista possíveis da estátua, aludindo aos diferentes usos desse símbolo e desse signo, que serviram simultaneamente de paradigmas para movimentos de subversão, de controle ideológico e de potencial de consumo. Hipnotizados pelo som do motor do helicóptero e pelo excesso de imagens de sua superfície, nos damos conta de que a liberdade sofreu um processo de despolitização e foi esvaziada de seu conteúdo semântico. Ela vira apenas um logo, um substantivo vazio de significação, estático.

 

Tal como a liberdade, o termo “política” vem sendo tão abundantemente proliferado com distintas cargas ideológicas, frequentemente com paradigmas mutuamente excludentes – política da arte, política partidária, política do sujeito, política global, política do capital – em um processo de despolitização, que clamar seu uso hoje sem assumir pessoalmente as rédeas de seu significado não só é difícil, como perigoso. 

 

O curador-colaborador convidado para compor o time curatorial da 29a Bienal, Sarat Maharaj, expôs em sua apresentação no Teatro de Arena/CAPACETE uma certa preocupação com o verso-título da mostra retirado do poema moderno de Jorge de Lima, “Há sempre um copo de mar para um homem navegar.” Segundo Maharaj, a tradução para o inglês por sinônimos mais próximos, arriscaria um ato sexista, dado que a palavra “homem”, traduzida para “man” excluiria da navegação mulheres, homossexuais e outras ditas minorias. Optou-se, portanto, pela versão “There is always a cup of sea to sail in”, que, percorrendo as curvas amorfas e sem objetivo preciso além do lucro a qualquer custo da arquitetura geopolítica global, boomerangueia para o português como “Há sempre um copo de mar para se navegar”. Para não correr o risco de descumprir uma agenda politicamente correta de um sistema democrático (sic) capitalista, que se intitulou teleologicamente o único possível, matou-se o sujeito. O sujeito da sentença original é excludente e o da sentença traduzida é inexistente. E sem quorum ou sem sujeitos, não há qualquer tipo de política.

“Oh, shit, I’m dead”, diz Parcker poucos minutos antes de Levin puxar o gatilho.

 


 

Referências: 

 

David Foster Wallace, Breves Entrevistas com Homens Hediondos. Trad. José Rubens Siqueira (SP: Companhia das Letras, 2005) 

 

Don DeLillo, Cosmopolis (NY: Scribner, 2003)

 

Franco Bardi (Bifo), The Pathologies of Hyper-Expression. Trad. De Aranna Bove (2007). http://transform.eipcp.net/transversal/1007/bifo/en#redir

 

Stuart Hall, “Democracy, Globalization and Difference”. In Documenta 11: Platform_1 Democracy Unrealised (Kassel:Hatje Cantz Publisher, 2002)

 

“Intelligence Agency”, Sylvére Lotringer em entrevista com Nina Power. Frieze Magazine, nº 125, Setembro 2009. http://www.frieze.com/issue/article/intelligence_agency/

 

Heitor Martins, “A importância da Bienal de SP para o Brasil”. Folha de São Paulo, publicado em 11-07-2010

 

Nizan Guanaes, “O termômetro da Bienal de São Paulo”. Folha de São Paulo, publicado em 24/05/2010.

 

Roland Barthes, Aula (São Paulo: Cultrix, 7a. Ed. 1996)

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