top of page

Uma entrevista nada imaginária ou diálogos assimétricos - Editora Primata

2015

DC – Entrevistadora

GC – Entrevistado

Transcritora – Título do texto, notas de rodapé que o estruturam e dão alicerce para a conversa

 

DC – Sobre a exposição...

GC – Então, a exposição é resultado desse processo de pesquisa sobre a construção dos modelos de percepção e as plataformas de produção de conhecimento, uma vontade de entender melhor a configuração da estrutura social como um todo. Eu venho pesquisando essa questão dos modelos de conhecimento pra entender como a gente age, ou reage ou constrói a ideia de realidade, as diferentes noções de realidade, como isso vai nortear final ou fundamentalmente os processos de configuração social... porque se a gente for pensar todas as atividades humanas, no fundo, elas reverberam num contexto coletivo, na estruturação política, que é o conjunto de decisões coletivas, realizadas em coletividade para o bem dessa mesma coletividade. Então no fundo, existe todo esse processo de interconexão entre as coisas. Se a gente for pensar na estrutura da sociedade e como fomos ensinados a responder às questões da vida, a ler a vida, a entender o mundo em que a gente vive, isso tudo é baseado num modelo, numa ideia...

DC – códigos...

GC – códigos, ideias, modelos e respostas, que se alteram com o tempo, se alteram com o local, a geografia, a maneira com que o ser humano vai formatar a ideia de prazer, de gosto, desgosto, independente do que seja, como ele ou ela vai responder à natureza. Essas respostas vão de alguma forma refletir o desenho da sociedade. Pensando nisso, que a sociedade é uma ideia e como que essas ideias são criadas, como esses modelos são criados, a exposição nasce da reflexão sobre outras plataformas possíveis de produção de conhecimento e modelos de percepção. Essa ideia do Diálogos imaginários é, de alguma forma, um exercício de reflexão poética pra tentar elaborar uma estrutura de experimento que estimulasse a necessidade de pensar numa outra plataforma de sociedade. Por exemplo, na época em que eu estava estudando essa questão dos modelos de percepção, de como a gente nasce num contexto e cresce aprendendo que é natural reagir ou responder a determinados estímulos da forma como a gente apreende os gestos dos outros. Eu lembro que na Copa do Mundo, a minha sobrinha, afilhadinha, com seus dois, três anos de idade, na hora do gol, ela ficava meio fora de contexto, sem saber o que estava acontecendo, e aí eu percebi que no segundo gol ela já começou a imitar as pessoas que estavam na sala, porque era a primeira vez que ela estava sendo confrontada com aquela situação de uma explosão afetiva diante...

DC – de uma tela...

GC – da tela, da bola entrando. E ela ficou sem saber muito o que responder. Já no segundo, ela já viu que tinha uma resposta positiva por parte do grupo...

DC – se ela imitasse aqueles gestos...

GC – se ela imitasse, aí todo mundo abraçou “filhinha! não sei quê”, aí o pai abraça, “aê, é gol, não sei quê”, então ela sente aquele carinho, ou ela sente aquele envolvimento na situação, e a partir daquele momento, está introjetada...

DC – ...numa ideia superabstrata misturada com estímulo físico. Deixa eu falar algumas coisas, antes de começar a entrevista já começada (antes de a gente reformatar o cartão) você dizia que o que te estimula nessa pesquisa é o porquê da gente ter essa necessidade de construir o conhecimento, por que a gente tem necessidade de formatar essas respostas de estímulos uma vez já sociais. Me fez lembrar de um livro, que pra mim é um livro fundamental da Simone de Beauvoir (1908-1996), que se chama Por uma Filosofia (Moral) da Ambiguidade[1]. O livro começa assim, ela diz  que pra todos os seres vivos, o processo de nascimento, crescimento e morte é natural, cada um tem as suas formas de se proteger da morte ou de tornar esse processo efetivo na reprodução, tornar esse processo menos agressivo, ambientalmente falando. Então você tem métodos de se aquecer, de se proteger e proteger suas crias, por aí vai. O sapinho vai lá, se reproduz, tem o veneninho que espirra na presa pra ele tentar ficar vivo o máximo possível. No livro, a Simone de Beauvoir diz que o ser humano é o único ser vivo pra quem o processo de nascimento, crescimento e morte é inteligível, nós sabemos que nós vamos morrer. Portanto, o nosso método de sobrevivência é fazer da vida um exercício de produzir sentido. A gente só pode produzir sentido pra que nós consigamos nos convencer de que vale a pena fazer tudo que a gente tem que fazer mesmo sabendo que um dia a gente vai morrer. Se não a gente poderia sair por aí se suicidando coletivamente, percebe? Então a forma de proteção, muito entre aspas, “””natural””” do ser humano é a produção de sentido e conhecimento. Que é maravilhoso. A partir daí vira um campo aberto de especulações e experimentos com relação a esse exercício experimental de produção de sentido. Arte entra aí, total. Eu devo até ter aí, eu posso te emprestar, apesar de ser meu livro fundamental querido, meu bebê, irmão do Felix. Uma outra coisa que eu queria dizer é o seguinte: nós estamos “falando” um texto e sabendo que ele vai ser impresso ipsis literis e isso faz com que nos esforcemos a falar de uma forma talvez mais eloqüente, já imaginando as pontuações e as concordâncias de verbo, ou seja, controlamos a língua oral porque já carregamos o peso do tempo da língua escrita nas nossas mentes. A própria conversa corrobora sua colocação sobre a programação de estímulos/respostas. No entanto, nesse exercício de diálogo, que não é imaginário, é um diálogo bem real, estamos cientes disso. Me parece que já exercitamos a tese da sua exposição aqui. Enfim, deixa rolar... No entanto, gostaria de chamar atenção para o fato de que, quando você diz que partimos de uma ideia de sociedade, tendemos a fazer com que a nossa imaginação desenhe a natureza como uma espécie de origem pra projeção de uma sociedade ideal, como numa reta: a natureza no ponto original e uma linha partindo dela e chegando na ideia de sociedade... Eu queria oferecer um desenho pra gente continuar nossa conversa que é, na verdade, uma forma elíptica, porque a partir do momento que a gente fala que nascemos e começamos a ser programados pra reagir de uma tal forma a certos estímulos inventados, parece que a natureza está fora desse processo de programação, e ela não está...

GC – não mesmo; isso está previsto, eu acho que isso está previsto na natureza...

DC – lógico, então, o que eu quero oferecer como imagem é essa elipse, ela é vetorial. Ela não é uma fita de Möbius. Esse também é o movimento do texto, sabe? A nossa conversa não é um ponto originário pra depois leitores, no futuro, citar, se basear, tal; a gente sai do plano cartesiano e a gente entra num plano vácuo, a gente entra num plano sem gravidade. A gente parte da natureza pra projetar uma ideia de sociedade, mas dentro dessa ideia de sociedade a gente “bumerangueia” e projeta uma ideia de natureza protegida dessa ideia social, e na sua pesquisa, você joga tudo pro ar e isso vira o seu campo de atuação.

GC – é interessante você trazer à tona essa reflexão. Pegando o gancho do que você falou, e continuando esse pensamento, quando a gente imagina a natureza expandindo, vamos supor, pra espaço sideral, galáxia, universo, cosmo, a gente vê a expressão ínfima do ser humano; e a gente ali, dentro de um contexto prepotente, como se a vida humana ou o produto da mente humana, do conhecimento humano, fosse algo resultante do contexto cósmico. E aí você pensa nas superestruturas orgânicas: imagina um sol, um buraco negro, e aí agora a gente pensa na nossa dor de barriga (risos), entendeu?...

DC – falta de sono (risos)

GC – falta de sono (risos)... quando a gente vê um pássaro, aí você ouve o canto do pássaro e aí você vê que se tirarmos o som da nossa voz, estamos movimentando o maxilar de forma parecida a do pássaro; vibrando cordas vocais, e emitindo sons que estão restritos – igual a gente conversou uma vez na Redbull[2], não sei se você lembra – ...

DC – ...vou editar Redbull; vou tirar do texto final (risos)

GC – isso! (risos) ... restritos a 24 fonemas. Num espectro infinito de sonoridades, de luz, do espectro eletromagnético, usamos apenas 24 desses sons no nosso contexto cultural como mecanismo ou ferramentas de produção de sentido! Estamos desconectados da natureza por subtração, ou pensamos que estamos desconectados, ou somos forçados a pensar assim, mas quando olhamos a sociedade na natureza, formigas, e cupins, e manadas, alcateias, a forma como os outros animais se organizam, fica evidente como no ser humano, apesar de deter mecanismos de comunicação mais complexos, lida com a morte de maneira mais nevrálgica. Como nossa estrutura de comunicação é a mais complexa, caímos num engano muito grande que leva a essa prepotência de como se a gente tivesse controlando, coordenando esses processos de forma, desenho social, esse grafismo das órbitas, da atividade humana, do esforço coletivo, a gente tem essa ilusão, quase como se fosse uma miragem, que a gente tem o controle absoluto disso. Mas se pensarmos um contexto maior, o eixo da Terra muda um grau, toda a nossa agricultura do planeta vai mudar; ele muda um grau pro outro lado, toda a configuração climática da umidade, dos ventos, das marés, vai mudar. Eu acho que há um desacordo entre o modelo perceptivo e esse suposto afastamento, esse entendimento de ruptura, dicotômico, polarizado entre ser humano e natureza. Mas cada dia que passa, eu tenho a sensação mais forte de que isso também é previsto pela natureza...

DC – unhun

GC – o bit[3], a tecnologia, redes, porque as redes de ventos, marés, ondas psíquicas e todas essas outras forças, ondas de rádio, ondas de outros espectros que estão interconectados na natureza também, elas estão além do controle humano, ele ou ela apenas usufrui dessas forças. Então eu acho que tem uma certa miragem no ar desse modelo perceptivo nosso que gera esse pequeno engano de controle, sabe?

DC – vamos partir pro trabalho...

GC – vamos. Então, a exposição tem seis trabalhos. A Atmosfera artificial, que é essa escultura de ar, que também é um exercício especulativo: o que é que tem nesse espaço? Ela é uma escultura de ar recomposto, um ar que é tirado da atmosfera, purificado na estrutura de cada molécula, depois ele é reengarrafado. Esse ar tem propriedades regenerativas celular, como no auxílio à cicatrização ou à recuperação no pós-operatório. Os cilindros ficam abertos dentro da sala, liberando esse ar que é respirado pelo visitante...

DC – a escultura que não é visível, ela opera numa escala molecular. Eu me lembro de termos conversado sobre isso, que esse trabalho é muito evocativo de uma discussão complicaDÍSSIMA no mundo da arte, mas mais pelo vício das palavras, porque tem, evidentemente, uma esfera significativa de cura.  Quando a gente lamenta, seria a palavra[4], ou quando a gente se posiciona negativamente com o fato da arte ter sido sequestrada e instrumentalizada por um mercado, ou/e por uma elite capitalista que faz dela uma ferramenta de ascensão social corporativa, enfim, tudo isso, o que a gente lamenta é justamente a perda de uma certa carga ritualística da arte...esse é o ponto complicado, porque não é um ritual necessariamente religioso... talvez sim se for na escala etimológica da palavra, de religare, no sentido de reconectar-se com a vida. Quando você se vê frente a um trabalho de arte que te toca de uma certa maneira, e que te faz, por um milésimo de segundo que seja, perceber toda a programação envolvida das respostas automáticas a tais estímulos sociais que a gente vem comentando, esse é um processo de religare. Esse é um processo, entre aspas, de “”cura””.  Portanto, o que é mais incrível nesse trabalho é que você tem essa experiência sem o componente visual num mundo onde há uma inflação dos estímulos visuais. Há as garrafas serializadas, lógico, que são super escultóricas e que remetem diretamente a momentos da história da arte, mas elas não são estilizadas; elas são, vamos dizer, estrutura de montagem. A obra em si é invisível.

GC – A sensação que eu tenho é que a pessoa que visita a exposição se pergunta “o que estou fazendo aqui?”.  nessa pergunta ela tem ao mesmo tempo uma ação efetiva na obra porque age no campo molecular,no campo molecular, que é o que está além desse processo de estímulo visual, desse contato especular e espetacular, imediato...Um impulso que gera uma frustração porque você não consegue ter uma conexão direta com o trabalho porque você não o vê, mas sua ação é efetiva, uma vez que ele age em nível molecular; a verdade é que a obra age dentro do visitante, mas inevitavelmente, ela te lança a um processo de questionar qual seria a função do seu estar ali...

DC – esse é um lugar político...

GC – sim. O que eu estou fazendo nesse espaço? Qual que é minha função nesse espaço?

DC – e o que é esse espaço, o que o preenche?...eu não estou vendo...

GC – exatamente...e muitas vezes, o que eu acho curioso nesse exercício de pensar outras possíveis plataformas de produção de conhecimento, ainda nessa problematização da produção de sentido, é que ali cabe a própria pessoa. Não é o lugar que dá a coordenada, ele te coordena...e o trabalho dispara esse tipo de questionamento...

DC – acho que todos os seus trabalhos passam por aí... as obras não funcionam se não tiver o corpo do visitante...

GC – exatamente...

DC – ou qualquer corpo, o corpo do segurança que fica do lado da obra, o corpo da faxineira, dos empregados do museu...

GC – quem tiver ali respirando,... o que eu acho legal é essa coisa que extrapola um pouco o controle, o nosso controle direto, sabe? Porque ele está fora do campo visual, ele está fora de um campo de alcance sensorial imediato, desse campo restrito da nossa possibilidade de alcance, o que o braço alcança. Ele dá essa dimensão mental do ser humano, é isso que eu queria te falar...

DC – uma dimensão molecular...

GC – é, essa presença que é o corpo mental. O eu que está na mente... o corpo que está na mente...

DC – ahan, entendi

GC – esse corpo criado... a ideia de corpo também é uma construção da mente. Porque o tempo faz com que nos decompomos inexoravelmente, não para, a gente não para de mudar, só que a nossa escala de percepção de tempo é diferente...

DC – a gente tem que controlar esse tempo, pelo que eu citei da Simone de Beauvoir, se esse tempo não for romantizado fica difícil mesmo, nós somos só seres humanos... se a gente tiver a percepção real, diária, de que a gente está decompondo, a gente não aguenta...com relação à prepotência do ser humano que você mencionava é CLARO que é uma exacerbação de um medo da morte recalcado, inconsciente...tudo isso ligado ainda a um projeto moderno, que é superpaternalista, machista e portanto, inseguro, incompleto. Esse projeto ainda se mantem às custas de muito sangue, muita guerra, muita morte, muita violência doméstica, muito estupro...

GC – muita dor...é, com certeza...

DC – muita dor, a gente ainda está num estágio muito violento

GC – de uma violência programada, né?

DC – de uma violência programada que gera muita grana para aquela tal elite capitalista que instrumentaliza a arte etc. Se conseguirmos dar um passo pra trás e olharmos com distanciamento, percebemos que isso não deixa de ser um processo de exercício de fazer sentido da vida, de uma maneira extremamente violenta, porque o medo da morte é violento, o medo da decomposição é violento...

GC – entendo... como um sintoma, né?

DC –não digo como sintoma, acho que o sintoma é a violência. Digo como estrutura de um certo modelo. O Atmosfera artificial nos convida a respirar o mesmo ar num mesmo lugar... é uma questão de escala sim, mas transponível. O fato de estarmos lá respirando altera a estrutura química daquele espaço, sabe? Por isso digo que não é sintoma, entende? Se você respira esse ar e essa obra de arte se manifesta num nível molecular, e a partir daí, o visitante ou a visitante se questiona sobre as estruturas daquele espaço, do lugar que ele ou ela ocupa naquele momento, então ele [o espaço] não é sintoma. Neste caso, ele é regenerador...

GC – é quase filosófico, um processo de autoconhecimento, só que impregnado num contexto orgânico, no ambiente favorável pra manifestação saudável da célula. Outro dia, eu ouvi uma frase que a pessoa falou o seguinte, na sociedade em que vivemos, você poder expressar a sua afetividade ou o seu amor se torna um privilégio...

DC – talvez seja isso que eu esteja chamando de cura, por uma falta de palavra melhor aqui, ou de regeneração. Porque se você consegue expressar amor por outro alguém ou por outras coisas, isso significa que você já percebe a estrutura complexa que separa um eu de outro eu. Gostaria agora de encerrar essa discussão para partirmos para o próximo trabalho, citando nosso querido Karl Marx, que escreveu um texto que se chama “Propriedade privada e Comunismo” do Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844[5]. Ele diz que o capitalismo nos força a viver com a ideia culturalmente construída de que o ser humano só tem cinco sentidos. No comunismo, uma vez que o ser humano transcender a si mesmo e os objetos e as coisas, ele e ela vai entender que somos munidos de infindos sentidos e que não há hierarquia entre ser humano e objetos e coisas que ele e ela produz. Tem uma ideia mística de que no comunismo nós viveríamos uma explosão dos sentidos.

GC – Ele fala dessa outra potência, outras possibilidades de intercâmbio de informação ou dessa troca de conhecimento exatamente pontuando essas limitações que são aprendidas, que a gente só pode se manifestar pelos cinco sentidos. Isso vira um roteiro que a gente tem que seguir restrito e parcial e limitado sobre o entendimento da nossa presença no mundo. Essa dilatação da nossa capacidade de participar na sociedade da qual diz Marx vem cerceada por um recorte do modelo de configuração total da sociedade...

DC – e que hoje está horrível, hoje vivemos um retrocesso, a gente está vivendo um fascismo do consumo...

GC – exatamente...

DC –as pessoas se comunicam, se amam, trocam ideias, tudo pelo e através do consumo, é muito louco...

GC – no Módulo de Comunicação Intra-orgânica, as pessoas se comunicam pela batida do coração... é um processo simples... tem um microfone cardióide[6], que capta a batida do coração, mas ele está num módulo invertido em que a pessoa de uma cabine acústica escuta o coração da outra cabine, então é como se elas trocassem os sons das batidas do coração.

DC – é verdade que quando um casal de namorados está deitado junto pra dormir, assim abraçadinho, depois de um certo momento o batimento cardíaco entra em equilíbrio, eles batem igual?

GC – em equilíbrio?

DC - ... não tem isso? ou não? ou é uma fantasia da minha cabeça? [7]

GC – pra te falar sinceramente eu não sei, mas enquanto eu estava fazendo esse trabalho, o tanto de gente chorando que eu comecei a ver. Gente sentada no ônibus e aí de repente a pessoa começa a chorar, a pessoa andando na rua e de repente estou passando e a pessoa começa a chorar...tem um processo de fragilidade embutido nesse trabalho que acho que joguei para o mundo e captei ressonâncias... tem essa coisa da não vez ou da não voz, sabe?, desse incômodo de falta de lugar e perspectiva. Isso que você mencionou sobre a vida ser mediada pelo consumo é cruel...

DC – isso me lembra uma situação que eu vivi agora no Japão. Estava conversando com a curadora de um Museu em Yokohama e que viaja muito pela Ásia, pelo mundo. Ela contou que em um período de viagens intenso, ela foi ao seu médico acupunturista e ele disse que o batimento cardíaco do ser humano não mudou muito nos últimos séculos. Houve alterações milimétricas, nanométricas, ao passo que o nosso comportamento mudou radicalmente no período de um século. Então, a prescrição médica foi de atentar ao ritmo do corpo, pois para entender o mundo de uma perspectiva histórica, há de se levar em conta o  ritmo do coração.

GC – olha só, gente...

DC – então eu acho que esse trabalho oferece um diálogo íntimo, corpóreo que desconstrói qualquer ideia de invenção de corpo que a gente tem na nossa mente, e que ainda retoma um tempo a-histórico[8], que daí é o tempo físico mesmo, é o tempo da música – tutum-tutum-tutum-tutum. Esse trabalho cita a artificialidade dessa programação das respostas a estímulos externos; é muito lindo mesmo... e a estrutura física dessas câmaras, também o coração tem  câmaras[9]; essas duas caixas de madeira que, como no trabalho anterior, também não é um trabalho que incita muito uma contemplação visual, ao contrário, ele quase se anula...

GC – a ideia é que a estrutura física da obra só esteja lá pra atender a possibilidade ou a viabilização daquela ativação, do acontecimento, do experimento...

DC – da mesma forma como o Atmosfera artificial age numa camada molecular que atinge todo e qualquer visitante independente de seu gênero, porte físico, crença, opção sexual, esse também é um diálogo que nos lembra que estamos no mundo num exercício constante de produção de sentido, pra fazer sentido da vida...

GC – e você não vê o outro. A questão de você não ver o outro, enquanto do diálogo, é como se você estivesse dentro do coração, a sensação, a ideia de construir a caixa, a câmara acústica é porque o tórax[10] é uma câmara acústica...

DC – claro...

GC – então, assim como o crânio, no processo de ouvir, de auscultação, o coração ressoa pelo corpo como um todo. O dedão do pé não ignora o coração, não é só pelo movimento mecânico da circulação não, quando ele vibra o corpo inteiro pulsa naquele tempo

DC – é maravilhoso. Lógico que a gente vai lembrar do John Cage! (risos). Ainda BEM que ele fez aquele trabalho do silêncio[11] que é...

GC – dos hertz...

DC – da câmara anecóica (à prova de som) para o 4’33’’. Ele fez uma pesquisa sobre o silêncio[12], concluiu que o silêncio não existe, porque mesmo quando você está numa câmara anecóica que é uma sala, um ambiente, cuja a engenharia é dedicada a evitar qualquer tipo de onda sonora dentro daquele espaço, você ainda ouve dois sons, um grave e um agudo: o grave é o som da circulação sanguínea e o agudo é o som do sistema neurológico funcionando. Radical, né?

GC – e daí , olha a potência desse trabalho dele, ele remete... pelo menos na forma com que eu consigo sentir esse raciocínio (e falar também é sentir o raciocínio)...

DC – sentir o raciocínio, lógico

GC – ...ele convida a gente a refletir sobre a natureza causal do ser humano, porque você vê que no final, os únicos sons restantes que permanecem, que resistem ao silêncio é o som...

DC – é o som da vida...

GC – entendeu? Eu acho que no fundo ele desnuda a questão cultural, residual, transitória. Como você falou no início da conversa, tentamos uma elocubração excessiva para tecer o raciocínio, mas no final o que resta é o seu pensamento, é o que você sente, é o que você pensa...

DC – o pensamento... a Sueli Rolnik é uma filósofa psicanalista que, quando fala sobre arte ou quando trabalha como curadora, ela sempre explicita o fato de que entende o pensamento como prática artística. Ela nunca difere o pensamento como um processo inicial do processo artístico com finalidade na obra para o espaço expositivo, enfim, só um parêntesis

GC – é, porque baseado no Marx, aquilo que você falou desse trânsito entre ser e objeto, a produção do objeto que atravessa a presença do homem no mundo,...

DC – do ser humano...

GC – do ser humano, ele ou ela é essa ação de plasmar, de conectar essa esfera abstrata do pensamento com o entorno, é uma reconexão...

DC – e nesse caso, a gente elimina também a discussão da funcionalidade do objeto, a discussão clássica, histórica social da arte. A discussão sobre a função do objeto artístico, na minha percepção ,é jurássica. Nessa reconexão do pensamento e objetos, essa distinção hierárquica é eliminada, cauterizada.  Para o Eu Moderno, a caneta existe para que transpasse o conteúdo da minha mente brilhante para o papel e para a posteridade. Mas aqui, a caneta existe em conexão com outros objetos, com a mesa, com as mãos, com a mente. Um objeto inca dentro de um museu – com seus alicerces institucionais coloniais, do poder da elite monetária – não está ali como parte de um exercício nacionalista da história do Peru. Aquele objeto é um sobrevivente, ele resistiu a milhares de anos, antes de ter Peru, antes de ter estado-nação.  Quem diz isso é meu querido amigo Pablo Lafuente[13], que tem uma pesquisa belíssima sobre a relação entre objetos no mundo e no mundo da arte. Nesse modelo prepotente em que a gente vive hoje, a gente coloca aquele objeto dentro de uma caixinha, mal iluminado, coloca um textinho ali embaixo e se apropria daquilo numa narrativa tosca de uma história originária e progressiva.  Porque na verdade aquele objeto nada mais é do que um símbolo do recalque da vergonha do fato de ter sido colonizado, de uma civilização tão sofisticada como os incas terem sido dizimados pela violência do processo de colonização. Por isso, a aura do “original”. Voltando aos nosso batimentos cardíacos são muito mais poéticos[14] e potentes na forma como coloca uma possibilidade de diálogo tão sofisticada a partir da engenharia natural do coração...

GC – natural... é igual a nuvem. Uma das soluções de engenharia pra transporte de água mais incríveis. Você quer uma coisa que gasta menos, que desperdiça menos? Você conhece a biomimetics? Ou biomimesis, eu esqueci o nome agora. Uma cientista norte-americana que engendrou essa disciplina. Ela e sua equipe saem a campo pra observar os processos naturais e conseguir aprender com eles...

DC – uhun, pra poder desenhar objetos?

GC – objetos ou mesmo mecanismos de engenharia que desperdiçam menos ou que vão gerar menos resíduos, por exemplo. O que ela fala é que a natureza com quatro moléculas de polímero geram todos os insetos que existem, com todas as refrações de cor e luz e esqueleto, e tem zero de desperdício, eles são 100% absorvidos, reintegrados ao sistema e reformatados em outras formas de vida. E nós, humanos, temos milhares de moléculas de polímero catalogadas e que geram muito menos configurações, de formas de utilização, e com um desperdício centenas de vezes maior (risos). É superinteressante! Agora eu queria falar uma coisa da questão do Peru que você colocou que acho importante. O processo de colonização a partir e pelo objeto se estende para processos de colonização mental, colonização do corpo, da coletividade, de imposição de um modelo de percepção, que descredibiliza o gesto. Hoje, o gesto da pausa, de você parar o seu tempo de utilitarismo, de estar produzindo alguma coisa, e ouvir o coração do outro, também tornou-se desconsiderado, ou desacreditado ou descredibilizado. Isso porquê esse tipo de gesto não foi capitalizado. Qual é o valor, qual é a moeda desse gesto, qual que é o ganho com ele?...

DC – o ganho desse gesto é o maior de todos, esse EU Moderno, esse EU com E maiúsculo, esse EU homem, esse EU projeto de virilidade, fragilizada, careada, que tenta se manter nessa produção do objeto utilitário obsessivo, neurótico se desfaz. Esse é o maior ganho: você se desfaz, você vira um som[15]. Esse é o grande lance... então, vou oferecer uma conclusão para a discussão do Módulo de Comunicação Intra-orgânica citando um texto maravilhoso do filósofo francês Jean Luc-Nancy, que se chama L'intrus (The Intruder), publicado em 2000. Se eu não me engano, ele ainda está vivo[16] . Ele sofreu um transplante de coração e como efeito colateral ele desenvolveu leucemia. A produção filosófica dele é maravilhosa porque é super-visceral. Leio super mal em francês, não sei avaliar com tanta propriedade, mas eu já li algumas peças dele em inglês e são muito, muito, impactantes. Esse texto em particular é quase um diário que acaba sendo um tratado sobre epistemologia, filosofia da linguagem, ética... em que ele diz que a partir do momento em que ele sabe que o órgão que bombeia a vida dentro do corpo dele não é o seu “original”, ele não consegue se referir como EU. Ele sabe que a doadora foi uma mulher, então ele não consegue se referir como eu Jean Luc-Nancy, ele fala em eu-barra-ela Jean Luc-Nancy...

GC – ...gente...

DC – é muito lindo, a partir dessa confissão íntima ele desdobra o texto num tratado filosófico

GC – mas sabe o que é engraçado, interessante nisso que você está falando? Outro dia eu pesquisava sobre o funcionamento do corpo e como a organicidade fisiológica interfere na percepção ou construção do eu, da personalidade, do estar no mundo... Essa coisa de trocar o coração e do Jean-Luc Nancy não conseguir se reconectar com o eu dele e virar o eu-ela... Até onde eu consegui entender é que o ser humano chega a ter mais de sete corpos durante a vida...

DC – no processo de divisão celular, que vai trocando, troca o sangue...

GC – exatamente, o corpo está em constante mutação

DC – ai, que bonito

GC – é como se fosse de dentro pra fora, a gente vai se refazendo constantemente... no processo cíclico de reposição da célula, num período x de tempo – eu vou rever esse dado – a gente é completamente outro corpo...de dentro pra fora o corpo expele os corpos antigos e se refaz... as únicas células que seriam entre aspas “permanentes”, as que nos acompanham ao longo do processo todo da vida são as células nervosas, as diretamente vinculadas ao cérebro, ao processo da memória, ao processo dessas percepções, do entendimento, agora o resto... somos sempre outro

DC – ai que bonito, que bonito (silêncio...) somos sempre o outro de nós... qual trabalho é esse mesmo? Mutação Incompleta?

GC – sim. Esse trabalho é uma narrativa de 390 nomes de cor. Ele é um exercício no deslocamento cognitivo. É um áudio que fala as cores. É aquela ideia de você entender que aquilo é um som, entender que aquilo é uma cor, mas dentro do repertório acumulado, a gente não encontra aqueles significados de cor tradicional... isso é uma cor, mas é uma cor falada, então onde está a cor? É essa ideia de disparar um processo de percepção visual por meio de um estímulo sonoro e na hora que você pensa a cor...

DC – ...você não agarra, você não segura, vira um flash...

GC – ...ela na verdade só remete a um processo natural, que até onde eu consegui pesquisar, parece que existe um desacordo na comunidade científica de que a cor é uma característica dos objetos. Grande parte dos estudiosos da cor defendem que a cor é uma sensação que é gerada no cérebro, tanto que no processo industrial para definir o que é o vermelho, o que é o azul, eles usam um coeficiente que é o observador padrão. Isso quem me explicou foi o professor da ciência da cor da UFMG, o Alexandre, não me lembro o sobrenome dele agora. É o seguinte: como se fosse uma pesquisa de estatística, eles pegam centenas de pessoas e convidam-nas a fazer um experimento onde você tem as três luzes RGB. Depois eles pedem para essas pessoas ajustarem num aparelho em porcentagens o que é vermelho, o verde e o azul. Nesse processo, o que foi observado, é que nenhuma dessas pessoas apresentava como sendo o vermelho, por exemplo, as mesmas porcentagens de R, G, B. É como se cada um de nós vivêssemos e percebêssemos um mundo absolutamente distinto, não existem dois mundos iguais...

DC – que bonita a sua pesquisa, Gui... a verdade é que você pode apresentar a sua pesquisa artística embasada na ciência..., a verdade não! a sensação! (risos)

GC – qual verdade? (risos)

DC – mas a sensação é que independente da pesquisa científica que alicerça seus trabalhos, o que você apresenta é um exercício de alteridade radical

GC – de ser o outro, porque essa coisa de ser o outro não é um papo furado

DC – você coloca um ar que vai interagir na molécula das pessoas, e cada uma vai inalar o trabalho de uma forma diferente; você coloca um pra ouvir o coração do outro e aí o cara vai ver que é o seu coração multiplicado em tantos corações que batem, para além da espécie humana; aí você oferece uma lista de 390 cores que poderia ser 3.900 porque uma cor é tão instável quanto os pares de olhos que as vêem...é um exercício poético de repetição sempre, de...

GC – de mergulho...

DC – de mergulho, superpoético

GC – e de como classificar o mundo, como nomear o mundo? Você imagina aqui na Terra... se a gente descontextualizar do plano terreno, vamos dizer que o “terraquialismo” (risos) excessivo também deturpa o quanto conseguimos fazer o religare, reconectar com essa acepção real da expressão humana que não é só estar no mundo, é EXISTIR....

DC – E esse trabalho é qual?

GC – esse é o Sinfonia (Neural). Ele faz o processo inverso. Eu convidei o maestro residente da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais pra ele poder participar e representar o trecho de uma música da escolha dele pro vídeo como se fosse um ato performático.  Aí ele escolheu, isso ele só me falou no final, uma ária de Madame Butterfly, de Puccini, o um bel di vedremo, que é “um belo dia veremos” (risos). Aí eu falei pô, parece trocadilho, mas não é. Eu expliquei minha prática para ele e pedi uma colaboração. Ele faz esse exercício todo e quando, no final, eu perguntei, ô Gabriel (Rhein-Schirato), só pra dar os créditos eu queria saber o que você tocou. Aí ele fala, eu toquei um bel di vedremo (risos). Você o vê conduzindo a música sem o som da orquestra e ela fala de um possível contato visual com a música, um dia... então, é como se ele tivesse também colocando num campo de tensão essa coisa de como tocamos o mundo, um dia veremos o mundo, NÃO, o mundo se descortina a partir dos seus gestos...

DC – precisa de tempo pra contemplar, o fato de você poder ver o invisível ou ouvir o Madame Butterfly a partir da visão do gesto...

GC – exatamente... esse é o Diálogos Imaginários, que é o trabalho que dá nome à exposição, onde o mergulho no invisível é literal. São duas pessoas debaixo d’água desenvolvendo um diálogo, uma conversa, e aí você só tem aqueles grunhidos blu°blu°blu° blu°blu°blu°blu° blu°blu°... como o vídeo foi montado de forma alternada, enquanto um fala o outro está ouvindo...

DC – ...e aí o som toma forma nessas bolhas de ar dentro da água

GC – toma forma... mas o que eu achei curioso, depois de ficar revisitando esse trabalho é que para cada sentença, o volume de ar é diferente, então a bolha de cada palavra vai ser também diferente e a forma com que ela vem pro mundo é diferente... é como se tivesse dando literalmente o limite desse mecanismo de comunicação, entendeu?

DC – quando a palavra não é emitida no seu campo natural, que é o ar

GC – exatamente, o limite transparece... aí a palavra se mostra a frágil

DC – quando a gente diz assim, ah, pela falta de uma palavra melhor, é porque ela encontrou um limite que não é encapsulado pelo ar, né? e na água é...

GC – e se você for pensar também, na origem já a palavra como limite, o processo e verbali... (silêncio, sussurros)

DC – diga, o processo...

GC – esse processo de verbalização como limite mesmo... você tem um caminho de adensamento do pensamento. A palavra pedra surge para designar pedra. Imagina, foram milênios de aglutinação molecular pra pedra virar aquela massa densa dura e milênios para a palavra surgir com o peso e a firmeza necessários para designá-la. Em nós é mais rápido, produzimos pedras no rim...(risos). Esse processo quase orgânico de produção da palavra, você está tacando a pedra, você está jogando pedra no mundo, é ESCULTÓRICO, palavra é lapidação

DC – é, palavra é lapidação...a palavra AR, em várias línguas, é curta e é um suspiro, ar, air, aire, aria, não sei como falar nas línguas asiáticas, mas enfim...ela é mimética e indexical ao mesmo tempo. É o sopro e a mente pensando o sopro, as duas coisas juntas...(suspiro-ar)...Passamos para o Bra [in_to] Brain communication?

GC – Esse é o trabalho que foi incorporado na exposição, no conjunto original, que é uma tentativa de poder propor uma plataforma de comunicação cerebral direta. É uma captura de exercício de pensamento. Ele apresenta visualmente o desenho do eletroencefalograma, captado por um aparelho de eletroencefalograma e projetado alternadamente no campo visual dos participantes, então uma pessoa enxerga o resíduo do eletroencefalograma da outra, e acaba que no final gera-se como se fosse um pingue-pongue cerebral...

DC – como um diálogo?

GC – um diálogo, é uma estrutura dialógica

DC – por que o Paulo Bruscky[17]?

GC – Ele estava em Belo Horizonte. Eu estava numa conversa com o pessoal que produzia a exposição dele e que conhecia essa proposta. Eles sugeriram que eu propusesse ao Paulo para fazer comigo. Ele tinha aquela pesquisa sobre os desenhos cerebrais na década de 1970, e aí o Bruno Vilela, meu amigo que organizou a expo do Paulo e que na época tinha um espaço de experimentação artística, o EXA espaço de experimentação artística[18], junto com o Marconi Drummond...Há tempos eles queriam fazer alguma coisa ali e disseram, pô, mas aquela sua pesquisa, podia ser uma boa oportunidade da gente materializa-la com o Paulo que está vindo aí...tem tudo a ver... Mandei o desenho pro Bruscky com um textinho curto da proposta, ele topou, chegou lá, a gente fez, são 15 minutos, o cara foi supergeneroso, me recebeu com carinho...

DC – a estrutura física desse trabalho, uma vez que a performance acaba e o reminiscente fica ali, é mais escultórica. Tem mais informação...mas ainda se vale do princípio da economia, como nas outras obras. Você colocou a mesinha, se é madeira, se a cadeira é de madeira ou é de plástico, não é isso que importa, ou mesmo a tela, o equipamento, o eletroencefalograma...ele não tem um apelo de um objeto mundano ter se tornado uma obra de arte; tampouco é cenário...

GC – não é um fetiche ali, da coisa em si...

DC – não tem fetiche. Os objetos são expostos ali com transparência, sem interferência ou entrelinhas. Você segura a onda do que eles significam, do que está por trás desses objetos...

GC – ele é como se fosse uma furadeira, ele está ali escavando, ele está tentando apreender a complexidade do cérebro...até hoje tentamos entender o que acontece ali dentro

DC – eu acho que essa montagem, como as  garrafas, como as câmaras do coração, fazendo uma comparação com a construção de um texto, se torna a estrutura alfabética da ação, entende? São os alicerces que estruturam a comunicação que você pretende construir, ele é o alfabeto da própria pesquisa, é muito bonito...Bom, e aí quando vocês trocaram ideia sobre a experiência, o que foi sentido? Como os impulsos foram traduzidos para o papel?...o desenho dos impulsos cerebrais são parecido, como é que é?

GC – foi uma curiosidade que surgiu... esse processo todo tem uma precariedade embutida nele que não dá conta de pontuar a complexidade envolvida na geração do pensamento, do funcionamento do cérebro, da natureza causal do pensamento. O que eles conseguem captar é uma micro voltagem residual que ainda é uma ideia antiquada do que vem a ser a vida baseada nesse processo da eletricidade que a gente gera e que toda a estrutura da natureza tem um grau de carga, tem uma carga pelo movimento, pela força vital que ali existe...

DC – um grau de carga de energia...

GC – energética, mas que muitas vezes ela é irrisória em comparação com toda a complexidade do ser vivo, da expressão da vida... então, essa parafernália que o ser humano tem tentado construir para escavar, aprofundar o conhecimento sobre o cérebro é um esforço legítimo, mas ainda é muito precário... eu acho que o trabalho tenta apontar pra um órgão, que determina nossa vida diária, por reger tudo, mas a gente ainda sabe usar mais o esfíncter, mais a barriga do que o cérebro, sabe? (risos) porque você vê, a criança precisa de um tempo longo pra aprender...

DC – a controlar o esfíncter, é verdade

GC – e os órgãos urinários, é um esforço muito grande, e a gente passa a vida inteira gerindo o que a gente põe no estômago, o que passa pelo intestino... ficamos a vida inteira controlando o sistema excretor, mas o sistema mental, psíquico sabemos menos dele. E é exatamente o que se impõe, porque é o que constrói a realidade, as noções, as ideias, o pensamento, a percepção...

DC – talvez a gente não daria conta de saber tanto dele, talvez só no Comunismo (risos)

GC – então assim, é uma provocação eu acho, eu gosto muito de ver esse trabalho como uma provocação...

DC – Gui, eu vejo nos seus trabalhos um desejo de dividir com o mundo uma forma real de estar junto num determinado lugar, mas de estar MESMO. Não é uma representação da presença, não é uma especulação da comunicação... no fundo o que você oferece para os visitantes da exposição são oportunidades concretas de olhar, ouvir, respirar o outro num mundo tão imaterial... o capital se desmaterializou, a vida tornou-se especulativa, mas ao mesmo tempo é uma vida que depende do consumo de objetos, que por sua vez são descartáveis... é meio esquizo. E eu acho que nesse lugar você coloca o objeto, a parafernália, no mesmo nível do interlocutor, não à sua mercê, pra suscitar encontros reais de diálogo necessariamente com um OUTRO (risos)...e ele não é refrativo...o diálogo não parte de um eu para um outro eu que volta pro eu inicial e assim ad infinitum; os eus se diluem em escala molecular... nessa nossa conversa que perpassa os trabalho sucessivamente, vejo um exercício orgânico e muito humano de querer estar junto...

GC – eu acho interessante isso que você fala porque se a gente, baseado nessa pesquisa de que o mundo do outro realmente é distinto do nosso, o esforço de acolher ou de acomodar a presença do outro na nossa vida impõe uma reformatação da nossa própria noção de realidade...

DC – é claro, isso me faz lembrar um artigo belíssimo que li recentemente, que acaba virando um exemplo de reformatação. O artigo dizia que numa tribo na África (aff, perdoe a generalização máxima de “África”, eu não sei exatamente qual tribo e qual lugar, e tomo responsabilidade por essa ignorância), a idade da criança é contada a partir do momento em que a futura mãe sente o desejo de ser mãe. Então, ela vai pra debaixo de uma árvore e fica ali sentada até ela aprender a canção daquele bebê. Ela vai lá e vai ouvir do mundo, do cosmo, da árvore a canção desse bebê. Uma vez que ela aprende essa canção, ela vai de encontro ao homem que vai ser o pai e o ensina essa canção. Enquanto eles fazem amor pra conceber essa criança, eles cantam essa canção. Durante a gravidez, a mãe ensina essa canção pra outras mulheres que vão assessorá-la pra ele nascer, pras mulheres mais velhas, e durante a vida infantil dessa pessoa, a comunidade inteira vai aprender aquela canção. Qualquer impasse que essa pessoa possa vir a ter na vida, qualquer dor que o amadurecimento necessariamente traz, a mãe ou qualquer cuidador/a vai cantar essa canção, e ela então vai ser transportada pra uma lembrança de reconexão máxima com todas as coisas e não vai se sentir perdida... bom, terminando, quando essa pessoa comete um ato socialmente repreendido, a comunidade faz uma roda, coloca essa pessoa no meio e todo mundo canta essa canção junto, ou seja, a ideia de correção social não passa pela punição e sim pela conexão amorosa entre todos os membros daquela comunidade que não vão fazer mais nada do que lembrar essa pessoa de que ela pertence, ponto. Ela pertence àquela coletividade, à história daquela comunidade e à paisagem daquele lugar. O que se afere da análise da experiência dessa comunidade é que a pessoa, quando ela fica em stress, é porque ela se desconecta desse corpo coletivo e fica mais apegada à especulação do que é ser um EU... ninguém aguenta ser um eu na verdade, é muito pesado carregar um EU, por isso fazemos tanta análise no ocidente! (risos)... é lógico que você está conectado com todas as coisas pelos polímeros, sabe? (risos) hidrogênio, carbono, enfim, é muito bonito isso. Nunca vi algo tão sofisticado...

GC – isso de perdão coletivo...

DC – eu não diria perdão porque o perdão é cristão

GC – é, de acolher

DC – de acolhimento pelo amor mesmo...o amor é sempre coletivo

GC – de não desconsiderar a presença do outro porque... o reconhecimento da natureza falível é insustentável, mas que a falibilidade do homem... a gente fala “homem” também pelo vício de linguagem...

DC – um vício político-patriarcal. Não, eu nunca falo homem pra todas as pessoas, eu sou feminista de carteirinha (risos)

GC – mas o ser, a nossa falibilidade não impede as outras possibilidades, não diminui a nossa potência necessariamente....

DC – eu acho assim, nesse caso, o reconhecimento do outro como você diz, no entendimento social dessa comunidade é que a existência desse outro ///////////[19]depende da minha existência, ////////então a gente nada pode fazer do que acolher amorosamente///////// esse ser, que vem de uma canção para a mãe mediada por uma árvore... é muito sofisticado...//////

GC – pois é, aqui lutamos pela vez e pela voz. Vivemos num sistema de estímulo//////// e frustração.../////////enxergar o outro passa pelo método /////de explorá-lo...[20]

 DC – esse é o processo capitalista... ele é /////bélico...

GC – impositivo

DC - como você colocou anteriormente, até isso está previsto pela natureza! (risos)

DC – Gui, vamu almoçar?

GC – Vamu



 

[1] BEAUVOIR, Simone de. Por uma moral da ambiguidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

[2] Em 2014, Guilherme Cunha participou da residência artística RedBull Station, em São Paulo.

[3] Dígito binário; menor parcela de informação processada por um computador.

[4] Lamentar = exprimir(se) por meio de lamentos, chorar com lamúrias; dizer com mágoa; deplorar, lastimar.

[5] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2009.

[6] É o tipo mais comum, que capta o som somente na frente do microfone.

[7] Acontece sim. Porque o coração ajusta o ritmo e a força com que ele bombeia o sangue com base no nível de atividade da pessoa num determinado momento; se duas pessoas se deitam juntas ao mesmo tempo com o objetivo de dormir, esse ajustamento ocorrerá nos dois corações dando a impressão de que eles estão batendo no mesmo ritmo e talvez estejam

[8] A-histórico – Adjetivo. 1. que não participa da história 2. avesso, antagônico à história; anti-histórico.

[9] O coração é dividido em quatro câmaras: átrio direito (AD), ventrículo direito (VD), átrio esquerdo (AE), ventrículo esquerdo (VE).

[10] O tórax é uma caixa osteocartilagínea que contém os principais órgãos da respiração e circulação e cobre parte dos órgãos abdominais.

[11] Performance chamada 4’33’’, realizada pela primeira vez em 1952, na qual o performer sentado a um piano é instruído a não produzir som algum durante quatro minutos e trinta e três segundos.

[12] Experiência realizada em 1950, na Universidade de Harvard, em que John Cage entra em uma câmara à prova de som para ouvir o “silêncio”. Ao invés disso, ele ouve um som grave e outro agudo, o primeiro decorrente de seus batimentos cardíacos e da circulação sanguínea, e o agudo de seu sistema nervoso.

[13] Pablo Lafuente (Espanha, 1976) é escritor, curador e co-editor da publicação Afterall desde 2005. Foi um dos curadores da 31ª Bienal de São Paulo.

[14] concordo plenamente!

[15] tutum tutum tutum tutum

[16] dia 26 de julho fará 75 anos

[17] Paulo Bruscky (1949) é um artista multimídia e poeta pernambucano, muito lembrado por sua arte postal. 

[18] E.X.A. Espaço Experimental de Arte. Em tupi-guarani EXA significa “conhecimento, saber e sonho”. http://www.exa.art.br

[19] moto acelerando, não deu para ouvir a fala... é o correr do tempo se intrometendo na conversa

[20] Ibid

bottom of page