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Lights Out: proporsições fotográficas em outros campos dos sentidos - Museu da Imagem e do Som MIS-SP

2008

Imagem, aparelho, programa e informação são os quatro conceitos-chave que ampliam a definição da fotografia na análise de Vilém Flusser em sua Filosofia da Caixa Preta, primeiramente publicado em 1983. Na urgência de se estabelecer uma filosofia da fotografia, curiosamente nas últimas páginas de seu ensaio, o autor conclui sua pesquisa condenando-a como inaceitável:


“imagem produzida e distribuída automaticamente no decorrer de um jogo programado, que se dá ao acaso que se torna necessidade, cuja informação simbólica, em sua superfície, programa o receptor para um comportamento mágico. A definição tem curiosa vantagem: exclui o indivíduo enquanto fator ativo e livre. Portanto é definição inaceitável. Deve ser contestada, porque a contestação é a mola propulsora de qualquer pensamento filosófico. De maneira que a definição proposta pode servir como ponto de partida para a filosofia da fotografia.”[1]


É nesse espaço de contestação em que Flusser nos encoraja a pensar a fotografia, que se pretende pensar Lighst Out. O ponto de partida será, contudo, uma outra definição elaborada dois anos mais tarde por seu amigo, artista e crítico, Andréas Müller-Pohle. 

 

Próxima em conteúdo e rigor técnico, a definição de Müller-Pohle esquematiza o sistema do processo criativo da fotografia – antes de tudo, um processo de produção de informação – em quatro fatores: o aparato (hardware/software), o produtor (fotógrafo), o objeto (matéria) e a luz (energia específica).[2] Lights Out se propõe a pensar o que acontece com essa equação quando um de seus fatores constitutivos se apaga: a luz como energia específica para se fazer ver o objeto desfaz a tecnicidade da produção fotográfica e a transforma em conceito. O artista deixa de ser o produtor – o operador do automatismo que enquadra uma fatia de realidade – para se transformar em propositor do conceito a ser desenvolvido através da fotografia que, aqui, sem luz, se expõe como tecido, som, biscoitos e desenho. Ou seja, a imagem fotográfica dá lugar a propostas fotográficas, não como objetos finitos, mas como processos em curso a serem vivenciados através do tato em Soft Porn (2003), Cyber Girls (2003) e 360 Spin (2004), da americana Whitney Lee; do olfato e paladar em City Cookie (1999 – 2004), dos chineses Leung Chi-Wo & Sara Chi-Hang Wong; da audição em Hyalin (2004), dos canadenses Skoltz & Kolgen e a partir da visão traduzida em gestos em Reprodutor (2008), da brasileira Rochelle Costi.

 

Retirar a luz significa apagar as tentações positivistas com relação à fotografia de ser um traço de um real, mimese, referente ou transferência de realidade, e abrir espaço para pensá-la em termos de verossimilhança, transmutação, singularidade e desígnio.[1]  Partir do princípio de uma economia geral da luz neutraliza o automatismo do processo fotográfico, dilata tridimensionalmente a superfície de impressão da informação simbólica e, finalmente, garante a presença do indivíduo como fator ativo e livre no fazer e pensar a partir e por meio da fotografia.

                           

***

A uma certa distância, o nu reclinado aparece como uma pintura impressionista – talvez pontilhada, como faria Seurat, ou “desfocada”, à moda de Monet –, com a diferença de que esse nu é menos contemplativo no que há de “belo”, e mais informativo no que há de pornográfico. Em Soft Porn (2003), a imagem de Sydney Moon, modelo erótico do site Playboy.com, foi apropriada pela jovem artista Whitney Lee e transposta para um outro tipo de rede, o da tapeçaria.

Uma certa perturbação perceptiva se cria a partir desse objeto que questiona as próprias condições da visão e sobretudo o próprio trabalho fotográfico, que acaba por seduzir o visitante ao toque. Lee amplia a foto ao ponto máximo de indefinição da imagem, agora composta apenas de pixels coloridos, para em seguida programar em seu computador uma palheta de cores numeradas que equivalem às cores de cada fio de lã, a fim de “tecer” a imagem digital em objeto tátil.

Essa completa indefinição da imagem como parte do processo de composição do trabalho fotográfico desintegra o valor indexical da foto apropriada – a mulher disponível a satisfazer os desejos sexuais do público masculino –, que agora, transposta em objeto, funciona como pretexto, disparador ou testemunho das condições de representação da mulher na sociedade ocidental.

Esse processo de objetificação da imagem fotográfica funciona como processo metonímico da mensagem intencionada pela artista, o da objetificação da mulher. O índice vira indicador, aquele que apenas indica uma problemática oferecida pela imagem, mas não a resolve. Em toda materialidade da obra, a fotografia é enunciada como figura de linguagem para ser articulada no toque do visitante. O toque como experiência de imagem está a convite de todos, e o olhar se torna oblíquo no que ele se manifesta para os lados, para os outros visitantes, a fim de evitar um possível constrangimento de se tocar o erótico em público.

A experimentação da imagem fotográfica ganha um caráter de degustação em City Cookie (1999 – 2004). Leung Chi-Wo e Sara Chi-Hang Wong documentaram recortes de céus das cidades de Nova Iorque, Toronto, Tóquio, Shanghai, e Hong Kong. Com perspectivas agudas, lembrando aquelas aplicadas por Rodchenko no começo do século XX, esses recortes são formados a partir do contorno gerado pela proximidade entre os edifícios nesses densos centros urbanos. Delineando uma forma específica para o céu de cada um, essas “demarcações celestes” servem como forma para a construção de assadeiras de biscoitos.

Na abertura da exposição, os artistas assam os biscoitos e servem “pedaços de céu” para os visitantes, como se a imagem não desse conta da memória fotográfica de cada local, e que portanto há de ser ingerida. Longe de se limitar a ser o instrumento de uma reprodução documentária da paisagem, a fotografia, ou o limite da imagem fotográfica como transferência de realidade, é de imediato pensamento integrado à própria concepção do projeto.

 

Essa idéia simples, quase lúdica, trabalha em torno da quebra da “essência” da imagem, uma vez que ela se transformará em restos orgânicos. No decorrer da exposição, os biscoitos são colocados em embalagens elaboradas pelos artistas e ficam disponíveis ao público em uma máquina de vendas (vending machine), seguindo a lógica do “gift economy”: o visitante deposita suas impressões sobre a cidade onde habita no espaço expositivo - sejam elas textos, objetos pessoais, outras imagens – e, em troca, recebe uma ficha para retirar o produto artístico e lavá-lo para casa.

 

Nessa lógica, subverte-se a noção de que a imagem fotográfica é “abstraída da continuidade dos eventos da vida” (Bergson)[2], já que aqui ela é transmutada em objeto comestível e devolvida ao mundo para ser degustada.

 

A “atividade retiniana”, como Duchamp descreveria a experiência fotográfica, é transformada em atividade sonora por Skoltz & Kolgen, em Hyalin (2004). Os artistas atuam, desde o início da década de 90, no universo da composição audiovisual ao vivo, onde a manipulação de imagens em tempo real compõe peças sonoras, como em Fluux Terminal, performance apresentada na abertura dessa exposição. A proposta oferecida em Hyalin é uma verdadeira intervenção no processo técnico da revelação da imagem fotográfica. Aqui, a construção começa com uma simples expressão sonora, nas palavras dos artistas, “uma representação gráfica: um espectro de arcos e curvas desenhadas por ondas sonoras”.

 

A instalação é composta de cromos de macrofotografias (close-ups extremos) de superfícies de vidro contendo suas microscópicas impurezas. O cromo, também denominado de diapositivo, slide, filme reversível ou transparência colorida, é uma película fotográfica com grãos mais finos de melhor saturação de cores, escala de tons, contraste e brilho. Um software híbrido sobrepõe as transparências macrofotográficas no design sonoro composto pelos artistas. Sejam simples ou mais complexas, as ondas sonoras reagem à densidade da película da imagem: onde a imagem é mais translúcida, o som é perceptivelmente alterado; onde a imagem é mais opaca, o som se torna “abafado”, restrito pela impenetrabilidade de uma determinada região do cromo com uma densidade maior de grãos.

 

Em escala microscópica (quântica), a transparência colorida se comporta como uma rede, e o comportamento das ondas sonoras em relação à densidade da imagem transforma-as em resíduos sonoros, e por conseqüência, a película “reage” fisicamente à passagem do som. Em suma, a “imagem” gerada pela arquitetura de Hyalin é uma assemblagem de camadas sonoras que se deposita na película fotográfica; é imagem para ser ouvida no processo de reversibilidade entre o filme e o design sonoro. A visão como sentido isolado para se vivenciar a fotografia é completamente anulada, sendo que a imagem é “revelada” por um processo sonoro e não foto-químico.

 

O design sonoro dos artistas canadenses dá lugar ao design do espaço como instrumento de reprodução fotográfica na instalação de Rochelle Costi.

Reprodutor (2008) vincula a estética da imagem à função e ao conceito de design, tanto na sua formatação, quanto em sua fruição.

 

Especialmente elaborado para a Lights Out, o projeto trata a própria visão como instrumento de reprodução da imagem fotográfica em traços. Rochelle Costi apresenta uma curadoria de reproduções fotográficas de Rosângela Rennó, Vik Muniz, Lenora de Barros, Thomas Farkas, German Lorca, Marina Abramovic, João Modé, João Castilho e Mauro Restiffe. A exposição contém “mesas de reprodução”, cujo design foi elaborado por Rochelle, com placas de vidros laminados na cor vermelha (o mesmo vermelho da luz usada em laboratórios de impressão fotográficas) instalados verticalmente de modo a separar a área de trabalho em imagem a ser reproduzida (fotos da curadoria, todas no tamanho A3) e área de reprodução (desenho sobre papel). Uma vez colocada uma fotografia, previamente selecionada pelo visitante, ao lado esquerdo do vidro, sua imagem é “projetada” ou refletida do outro lado, sobre uma folha de papel branco A3. O visitante é convidado a reproduzir essa imagem – “flutuante”, etérea, totalmente imaterial em seu reflexo – no papel, desenhando-a, para depois colocá-la junto às fotografias impressas, compondo a curadoria assinada por Rochelle, agora contendo seus “originais”.

 

A imagem fotográfica passa pela lente do olho só para ser devolvida à superfície do papel novamente, traduzida e deslocada no traço do visitante. Neste exercício de visão proposto pela artista, o traço se torna a própria ferramenta de ver a fotografia, gerando um resultado outro que não a foto. A artista une a mecânica da câmera e a mecânica do olho e do traço (elementos que uma vez deram origem ao design do aparato fotográfico) em um único espaço, revelando que a reprodução nunca é fiel; a reprodutibilidade é sempre autoral e subjetiva, seja ela mecânica ou manual.

 

Yves Michaud aponta que as características da imagem fotográfica e as condições do olhar são constantemente permeadas pelo dilema do analogon – “o perfeito do real” daquilo que “desapareceu” do espaço-tempo – e do artifício – o que é artificialmente fabricado[3]. O traço do visitante devolve para o presente aquele “traço de realidade” contido na fotografia e o afirma como informação simbólica, e ao artifício é rogado seu caráter de artifex (ars + facere), fazer – subjetivo – com arte. O design do espaço como aparato de reprodução e o desenho como índice da imagem reproduzida traduzem a informação em desígnio, sinônimo de intenção. A instalação de Rochelle Costi trata sobretudo da fotografia como intenção, e não realização de fato, no exercício de retratar o mundo.

Os trabalhos apresentados aqui utilizam a fotografia de acordo com desafios variados relacionados à exteriorização do espectador frente à superfície plana do objeto fotográfico. São trabalhos que exigem a entrada efetiva do interlocutor em suas propostas artísticas a fim de criarem condições de construção de jogos de sentido a partir de circunstâncias fotográficas ampliadas e amplificadas em outros campos dos sentidos. Ao longo desse percurso, essa proposta curatorial procurou operar recortes e privilegiar os indivíduos mais que as problemáticas teóricas que seus trabalhos geram, estas oferecidas ao embate crítico e experimental do público.



 

[1] Vilém Flusser, Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002) p. 70; ênfase do original.

[2] Andréas Müller-Pohle. Information Structures. European Photography 21, “Photography: Today and Tomorrow”, vol 6, no. 1, January/February/March, 1985. Traduzido do alemão por Jean Safken. Não só o curto tempo entre a publicação do ensaio de Flusser e o de Muller-Phle garante uma proximidade intelectual entre os dois textos, como também este último é o detentor dos direitos autorais do livro do amigo, o que assegura um grau de intertextualidade entre o pensamento dos dois autores, que me fez sentir confortável em utilizar sua definição do processo criativo da fotografia como ponto de contestação para a elaboração dessa proposta curatorial.

[3] Philippe Dubois, O Ato Fotográfico e Outros Ensaios. Trad. Marina Appenzeller (Campinas, SP: Papirus Editora, 1994) p. 45

[4] Henri Bergson, Matter and Memory (Londres, 1896), citado em Yves Michaud, “Forms of Looking: Philosophy and Photography”, in The New History of Photography. Ed. Michel Frizot (Bonner: Könemann, 1994) p. 732

[5] Michaud, p. 731

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