Súbita - Centro Cultural São Paulo CCSP
2013
Para o programa de exposições de 2013 do Centro Cultural São Paulo, a artista selecionada Márcia Beatriz Granero apresentou o oitavo episódio de uma espécie de rapsódia em curso que se desenvolve em torno da personagem concebida e atuada pela artista, Jaque Jolene. Súbita apresenta o encontro dessa personagem com seu duplo envelhecido no porão desativado do edifício em que o vídeo foi exibido. Uma espécie de prótese de si mesma, esquecida e antecipada, o duplo vintage futurístico de Jaque Jolene - que emula a arquitetura do CCSP - demonstra o desespero caleidoscópico de reformulação de si a partir da constante oscilação entre o encontro com a cidade de São Paulo e a fuga dessa realidade urbana na tentativa de fazer algum sentido dela. O magnetismo que se apresenta na narrativa surpreende pela introdução de um outro duplo: a personagem interrompida, incompleta, frágil, traumatizada e muda de Jaque Jolene acena para uma modernidade brasileira interrompida e deslumbrada – ou, como Jaque, forçada a se aposentar antes do tempo por motivos psicológicos.
O Centro Cultural São Paulo foi projetado por Eurico Prado Lopes e Luiz Telles em 1976, ano em que venceram a competição pública que lhes deu a comissão. O conceito principal do projeto centrou-se em definir o que e como seria a personificação de um espaço público em um projeto arquitetônico para a São Paulo das décadas de 80 e subsequentes. Elementos históricos e contemporâneos da arquitetura forneceriam a base para o desenvolvimento do conceito de um edifício que vincula memória e futuro. Futuro este ao qual edifício e memória vão continuamente pertencer.
A construção é o que sobra de uma ideia, diz Luiz Telles[1]. Os arquitetos sabiam que a condição pública do espaço não se limitava ao fato dele ser de “propriedade pública”, mas aquele que incorpora “uma vocação para a liberdade”[2] por oferecer, em primeira instância, possibilidades de percurso: “eu passo como? Eu entro por uma porta e saio pela mesma porta? Eu entro e transito por várias paragens e saio por outras portas? Aí começa a questão da liberdade; ela é vivencial, não é teórica”[3]. No entanto, o CCSP foi projetado e inaugurado em meio a uma ditadura militar que cerceava justamente a liberdade vivencial e sobretudo sua manifestação em espaços públicos.
Telles nos conta sobre a ignorância dos militares em relação ao espaço que proibiu o projeto original de conter um teatro, um cinema, ou seja, tudo aquilo que na mente deles seria possível atrair aglomerações. Só que essa ignorância não lhes fez perceber que o conceito principal sobre o qual se amparou o projeto para um espaço público era definir um ambiente que encorajasse a reunião de pessoas. Seja um encontro de passagem, seja um de permanência nas paragens, a reunião entre pessoas sempre tem um caráter político. Assim, no relato de Telles, conseguimos ver a negativa da estupidez militar: não seria a cultura a atrair pessoas, mas a reunião de pessoas que demanda uma produção cultural e que per/forma uma cultura. Não é o indivíduo que busca entretenimento particularizado que se aglomera nos espaços públicos, mas o “ser público”que se encontra e quer encontrar o outro, ou até mesmo encontrar-se no outro, ainda que seja sem consciência: um ato espontâneo. Portanto, o espaço público não é meramente aquele de propriedade pública, como já dito, mas aquele que abriga seres públicos. É desse ser público que a ditadura se deu o direito de odiar e temer; e é esse ser público que o neoliberalismo deu conta de vampirizar.
“O arquiteto é um grande travesti: ou ele se traveste no outro ou ele nunca vai acertar”, resume Luiz Telles. A artista Márcia Beatriz Granero se traveste de Jaque Jolene em seus vídeos. A prática da artista consiste em conviver somente com sua personagem, acompanhando suas transformações comportamentais e psicológicas por oito vídeos já produzidos – o vício, a abstinência, o banho de sol na Av. Paulista, as alucinações no porão desativado de um edifício público e no cemitério, por exemplo. Como veremos a seguir, o traço psicológico que Márcia confere a sua muda Jaque Jolene e a insistência em atuá-la remetem à “vampirização e comercialização de formas de vida que explicam parte da nossa claustrofobia contemporânea”[4].
O porão em que Jaque Jolene encontra seu duplo envelhecido é uma área de 10 mil metros quadrados – dos 50 mil totais– que foi inaugurada inoperante por motivos eleitorais em 1984. Jaque sofreu alucinações num espaço espremido entre memórias, que já se mostram parte de uma linearidade encavalada – a sociedade disciplinar e a sociedade de controle –, e uma projeção de um futuro colonizado. O duplo que a personagem encontra no vídeo, encontramos também no porão ainda desativado: o duplo do universo moderno e o (outrora “pós-moderno”) neoliberal. Como sugere Peter Pal Pelbart, “[s]e numa sociedade dita disciplinar, ainda tínhamos a ilusão de transitar de uma esfera institucional para a outra, com uma margem de manobra e um respiro, digamos, da família para a escola, da escola para a fábrica, da fábrica para a caserna, da caserna para o hospital, numa sociedade do controle como a nossa, essa margem de manobra parece ter se esvaído... Os poderes operam de maneira imanente, não mais de fora, nem de cima, mas como que por dentro, incorporando, integralizando, monitorando, investindo de maneira antecipatória até mesmo os possíveis que vão se engendrando, ou seja, colonizando o futuro[5].
Nesse coletivo privatizado, onde se perde a noção do comum (comunidade), surge Jaque Jolene uma personagem vintage-futrística solitária, forçada a se aposentar antes do tempo. Jaque parece viver entre uma malha social e urbana engendrada a partir de travas: pregos e vigas que flanqueiam um futuro desativado, condenado à colonização pelo interesse do capital. No entanto, foi dessa malha que Jaque forçou-se se aposentar para garantir respiros de vida autônoma. Sua mudez e aparente desequilíbrio emocional não são destituídos de linguagem. Jaque me parece ao mesmo tempo uma multidão desprovida de centro (daí o aparente desequilíbrio), plural (daí a aparente esquizofrenia), sem direção unívoca (daí o champagne e entorpecentes recreacionais), e a singularidade; o indivíduo, mesmo que frágil, potente; mesmo que solitário e mudo, o ser público. Jaque Joelene é a cidade, personagem inventada por Márcia Beatriz Granero para tentar fazer algum sentido dela (cidade, Jaque). A partir dessa personificação, abrem-se possibilidades para ensaiar um futuro com pé direito alto, flanqueado por portas de vidro que ampliam o campo de visão e que permitem inúmeras instâncias de percurso; um futuro-agora que se mistura à topografia do seu terreno – à memória, ao presente, garantindo-lhes encontros nas paragens e passagens de ar.
[1] Luiz Telles em entrevista à equipe do Centro Cultural São Paulo, na ocasião da celebração de 30 anos do edifício. http://www.centrocultural.sp.gov.br/30anos/video_luiz_telles.asp
[2] Ibid
[3] Ibid
[4] Peter Pal Pelbart, “Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada”. Palestra ministrada no III Seminário Internacional A Educação Medicalizada: reconhecer e acolher as diferenças em 15/07/2013. http://www.redehumanizasus.net/63611-viver-nao-e-sobreviver-para-alem-da-vida-aprisionada-peter-pal-pelbart-primeira-parte
[5] Ibid