Todavidareto - Pinacoteca do Estado de São Paulo
2018
Lindo o dizer na língua portuguesa “todavidareto” quando se pede informação sobre um caminho a ser percorrido. Pressupõe-se que alguém interrompe o percurso para informar-se porque está perdido ou perdida, ou mesmo porque antecipa um estado de desorientação a ser evitado. Em outras línguas, o lançar-se por toda a vida para chegar a seu destino não existe: em inglês: all the way down; em sueco: hela vägen ner; em francês: toujours droit em espanhol: siempre recto; em italiano: tutto dritto, e por aí vai. Nessas línguas, a informação é ilustrada com um elemento geométrico – uma reta: droit, dritto, recto – ou um direcionamento indicativo para “baixo” –
down, ner.
Na nossa língua, vai assim: vai reto aqui, vira na terceira à direita, logo à esquerda, segue toda vida, vai embora, todavidareto, que cê chega. Toda a vida é, obviamente, um processo de demolição. E esse “todavidareto” comporta curvas, buracos, obstáculos, luzes vermelhas, verdes… é um lançar-se ao que foi dito, à metáfora e à poesia, à paisagem nunca reta, ao ritmo indeterminado que o tempo de “todavidareto” compõe; ou seja, é um percurso a ser traçado com o corpo todo: um regime de encaixe entre corpo, coordenadas, paisagem, tempos e geometrias, no qual o ego há de se diluir, desencaixar-se, lançar-se às incertezas próprias da vida para conseguir chegar ao destino. Se não, não chega. Vi esse grafite que intitula o texto nas ruas do Centro da Lagoa em Florianópolis poucas horas antes de ter recebido o convite para contribuir para este catálogo. Fiquei com isso na cabeça. Essa imagem.
Essa é uma imagem que usa meios dos mais simples para criar efeitos complexos – meio imagem, meio texto, um signo; um símbolo – : uma reta infinita que gera três triângulos. Seus vértices se intercalam permanecendo vértices e gerando três losangos nos centros dos vértices – triângulos em oposição – eles mesmos de retas infinitas; e o texto “todavidareto” tornado imagem, uma reta, um desenho. Fiquei. Com isso na cabeça, não sei se por um vício de leitura crítica do mundo (da arte) ou se por instinto, ouvindo a gramática dessa imagem, pareceu-me o percurso propício para chegar na obra de Hilma af Klint.
Uma artista sueca que gozava de relativo sucesso na primeira década do século XX como pintora naturalista, lança-se nesse momento a experimentações estéticas guiada por forças espirituais místicas. Entre cerca de 1904 até sua morte, Hilma produziu um vasto e complexo corpo de trabalho com imagens abstratas, acreditando ser ela o meio pelo qual forças espirituais se canalizavam para concretizarem-se nas pinturas. Com extrema riqueza ilustrativa, Hilma parte de um minucioso estudo estético e científico da flora natural, onde ali permanece por anos com o estatuto da arte balizando suas produções. Na última década do século XIX, junta-se ao The Five – um grupo de cinco artistas mulheres cuja produção prosseguia a reta mística, qual seja, a de “receber” as coordenadas para realização de suas pinturas desde o infinito, desde um saber não racional personificado nas mensagens do “Grande Mestre”, encarnadas nas telas em forma de rito. Rito, eu diria, não necessariamente ritual. Rito de passagem. Ou ainda, a transcendência, comum no vocabulário da pesquisa abstrata, desde seus primórdios canônicos até o “agora” do tempo desse parágrafo. A partir daí, Hilma se coloca como veículo, como meio:
Os movimentos foram realizados diretamente através de mim, sem qualquer desenho preliminar e com tanta força a ponto de não saber para onde as formas deveriam me levar. No entanto, trabalhava com tamanha velocidade e clareza, sem sentir que devesse alterar qualquer direção ou andamento do pincel.[1]
A transcendência pressupõe um caminho, um ponto de origem no presente a ser percorrido – do latim transcēndo, is, di, sum, ĕre: atravessar, ultrapassar, transpor – para uma projeção de futuro. Para os ditos precursores da abstração, os Der Blaue Riter, Mondrian, Malevich o tema da transcendência, mesmo que pautado por uma semiologia que comporta os adjetivos “místico” e “religioso” – compunha-se em torno do exercício intelectual e pictórico-formal. O icônico Quadrado negro sobre fundo branco (1913-15) de Kasimir Malevich foi exposto no vértice criado pelo encontro de duas paredes e teto à maneira que um russo ortodoxo na época situaria uma imagem religiosa. Tal composição mística alude ao desejo de transmutar um mundo sequestrado por uma economia bélica-ortodoxa-imperialista por um esquema geométrico e uma cosmogonia de cores que ofereceriam ao homem (notadamente, nesse momento do mundo, “homem”, não indivíduo, ser humano) uma arquitetura harmônica universal.
A diferença, parece-me, é que Hilma af Klint estabeleceu o ritmo da transcendência no próprio corpo como ultrapassagem tornada forma, e que sua escala se encerra nas próprias pinturas e não no universal. Aqui sim na escala do ser humano, mesmo com dimensões de telas que ultrapassam os limites fisionômicos do corpo. Suas abstrações pré-datam às dos pioneiros do abstracionismo, a título de curiosidade, de historicidade. Mais ainda: no percurso da transcendência, a demanda é a transcendência do sujeito que predica o objeto; na transcendência, a demanda é a apropriação do sujeito pelo objeto, ou o sujeito tornado caminho, o próprio objeto a ser transposto. O Quadrado negro sobre fundo branco respeita a matemática, a arquitetura, o vértice. Ele se ampara na geometria para ordenar o caos. Ele te engole pela mente mas sem alcançar as pernas. Já Hilma, na série Os dez maiores (1907), por exemplo, cria uma dança entre caos e geometria, movimentando-a num transe, libertando formas e cores dentro da tela e para fora dela, atravessando o corpo todo do espectador e o corpo do espaço, como num rito. A série se descortina em quatro capítulos dedicados ao tempo do percurso traçado na vida: infância, juventude, idade adulta e velhice. Rito de passagem. Aqui, a escala pictórica que engole o corpo reafirma a reta-texto-desenho, como se a pintura dissesse “todavidareto” para dentro de si mesma.
Assim, o ego se dissolve e torna-se contingente. A pintura, nesse caso aquela que predica o sujeito artístico, torna-se um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de experiências sensoriais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, que se dá à percepção sem deixar resto. Sempre em frente, todavidareto. Em A série do átomo (1917) vemos sobretudo um exercício de transparência e luz, uma vez que se propõe traduzir o movimento da força atômica em sua imaterialidade e invisibilidade. Os quadrados do campo inferior direito e, em oposição diminuta, aqueles do campo superior esquerdo da tela permanecem como diapasão para o surgimento de outras formas geométricas – triângulos – que de forma sutil e insistente se acomodam em diferentes ângulos com o reto do quadrado. Esses traços que outrora se encontraram desaparecem em cores ora quentes, ora sólidas, dissolvendo-se por fim (ou por início) em diagrama, linhas de um contínuo processo de amanhecer, próprio da experiência extática. No êxtase, a referência de tempo não é o tempo, mas a luz (mística). Para Hilma, não há antítese entre o mundo natural e a abstração. É a conjunção do diagramático e o contingente tornados forma pelo efeito acidental do material pictórico a partir de “anotações” de forças sensoriais místicas que trazem a produção estética da artista livre dos protocolos da pintura.[2]
Se há uma problemática em torno do posicionamento de Hilma na historiografia da abstração da arte não é somente o questionamento sobre sua produção ser de cunho estético ou não, e sim porque essa mulher abandonou o projeto de autoria de forma radical. Hilma abdica desse projeto de forma explícita: ela torna-se meio, medium, apenas uma circunstância para realização de suas pinturas. O modernismo é sobretudo um projeto cunhado pela autoria, cunhado por um sujeito-autor que se enquadra numa arquitetura específica, patriarcal. Em termos historigráficos, após o modernismo e o decreto da morte do autor, entramos então no seu pós, o hoje, ainda que em negociação. O léxico inventado pela artista como necessidade linguística que surge junto com as primeiras experimentações abstratas na arte, são, portanto, do “agora” do tempo deste parágrafo, enquanto ele é escrito. Em tempo, com a publicação das 27 mil páginas de diário ilustrando seu método e fenomenologia próprios, aprenderemos que o figurativo se constrói a partir de instantes dentro de um projeto abstrato maior, tal como as formas fugidias das nuvens que adornam o céu da paisagem imaginada todavidareto; que a informação adquirida da natureza e de coisas que não podemos explicar é complexa e abstrata.
A gramática visual de Hilma af Klint realizada como “acontecimento” místico e estético, ao penetrar no discurso da arte, perturba-o, e pelo seu surgimento deflagra uma torrente de fenômenos perceptivos e predicativos até então inéditos.
Ontem
Trucidar meu corpo
Projetá-lo ao futuro
Sem razão alguma
Hoje
Sem motivo algum
Devolvê-lo ao passado
Remontar meu corpo
Amanhã
Willys de Castro
[1] Essa citação é do texto do Hans Obrist, que possivelmente teve acesso aos diários de Hilma (traduzidos do sueco), quando da mostra realizada na Serpentine Gallery, em 2016. Eu não tive. Portanto não me sinto obrigada a traduzir do inglês para o português a exata sintaxe da sentença, e sim aquilo que imagino ser a intensidade de se sentir veículo, meio, médium, medium, um esquema para a realização de uma obra artística – e ainda expressado no ambiente privado do diário com sua arquitetura mole, uma disciplina mole e quente, com limites precisos: da página, da língua, da escrita, mas sem censura. Vai aqui a sentença citada a título de comparação: “The pictures were painted directly through me, without any preliminary drawings and with great force. I had no idea what the paintings were supposed to depict. Nevertheless, I worked swiftly and surely without changing a single brush stroke”. obrist, Hans Ulrich “An Extraordinary Experience”. In: almqvist, Kurt & belfrage, Louise (Orgs.). Hilma af Klint: Seeing is Believing. Londres: Koenig Books, 2017, p. 93.
[2] fer, Briony. “Hilma af Klint: The Outsider Inside Herself”. In: Kurt Almqvist e Louise Belfrage (Orgs.), op. cit., p. 103.