Um ótimo negócio (Arte diet para a obesidade mórbida do capitalismo financeiro) - Carta Capital
2011
A arte contemporânea joga com o inegociável da vida social. Ela desestabiliza o estabelecido; fricciona, negocia, destrói, revela, ilustra, dialoga com a matriz ideológica que sustenta uma certa hegemonia de valores. A instituição cultural que abriga tais práticas veicula essa produção de saberes não-hegemônicos, expõe aquilo que há nas entrelinhas desses discursos, e assim nos instiga a imaginar uma sociedade outra, um lugar melhor. Ou seja, a arte é fundamentalmente de cunho social e político.
Não se trata aqui de reduzir o papel da arte, mesmo que assim o pareça na tentativa de defini-la em um parágrafo. Trata-se de dizer que nos últimos anos ela vem perdendo o jogo como um “bem público” da vida social para se tornar um “ótimo negócio” dos interesses privados.
Há aqueles que regozijam com a explosão do mercado de arte e o importante lugar que ocupa nele a arte brasileira. Novas galerias surgem em São Paulo a cada semana, o mundo conta com mais de 300 bienais, e as inúmeras feiras celebram o interesse crescente pela arte a julgar pela alta visitação e o alto volume de vendas. No Brasil, centros culturais privados geridos por dinheiro público advindo de incentivos fiscais exibem seus nomes fantasia nas fachadas de prédios imponentes em endereços nobres com orgulho filantrópico.
Precisamos retroceder alguns séculos para entender como tudo isso começou. Desde o primeiro momento em que artistas começaram a viver de sua produção, alguma forma de mercado de arte negociava transações entre pessoas que detinham poder e pessoas que detinham talento artístico. O primeiro crítico do mercado da arte, Gerald Reitlinger, atestou em seu clássico The Economy of Taste (1961) que o mundo não poderia oferecer enormes quantias de dinheiro à arte até que o mundo obtivesse enormes quantias de dinheiro. Isto é, após a industrialização e financeirização do capitalismo. Quando pinturas históricas e cubistas figuraram juntas nas primeiras IPOs do século XX (do inglês, initial public offering; evento que marca a primeira venda de ações de uma empresa no mercado de ações), atingiram um valor astronômico, pois, subitamente, as pessoas passaram a ver pinturas não apenas como representações de valores históricos, mas de valores futuros. Obras de arte passaram a ser avaliadas não mais como objetos de valor agregado, mas como unidades de medida de valor especulativas. Mais recentemente, a caveira cravejada de diamantes de Damien Hirst, com custo de produção de U$23.6 milhões, foi arrematada por U$100 mi, o maior valor já atribuído a uma obra de um artista vivo.
Foi a partir dos anos 80 que, respondendo à crise de estagflação mundial ocorrida na década de 70 e início dos 80, o capitalismo dirigido pelas finanças disseminou a sua lógica inexorável do mercado caracterizado pela ausência de regulamentação e voltado para a maximização do valor aos acionistas por todos os cantos do planeta. E a velha novidade é que os executivos do capitalismo financeiro que patrocinam as artes e ocupam assentos em conselhos administrativos de museus são os mesmos acionistas voltados para a maximização do valor a qualquer custo por todos os cantos do planeta. O caráter filantrópico associado ao patrocínio empresarial à cultura como “bem público” mascara um outro tipo de maximização do valor: o do capital simbólico. Tal como os antigos empreendedores, as elites corporativas lutam para consolidar sua posição e seu status dominantes na vida corporativa por meio de uma intricada rede de relações econômicas e sociais. Engajar as companhias no comando das artes e atividades culturais é parte dessa estratégia.
Em outras palavras, qualquer tipo de patrocínio corporativo à arte e cultura, seja por meio de doações, e principalmente por incentivos fiscais, gera lucro. Portanto, não há mera coincidência entre a bilionária ascensão do mercado da arte contemporânea e a desregulamentação do capital financeiro. Pautado por uma economia desterritorializada de especulação do capital, o neoliberalismo encontrou na obra de arte, como mercadoria de especulação sobre valores futuros, sua alma-gêmea. Aquilo que se convencionou chamar de “Economia Criativa”, a partir dos anos 2000, foi a bem-sucedida união em comunhão de bens da economia neoliberal com a arte; uma expressão que designa deliberadamente a privatização da cultura.
Os riscos que esse cenário nos traz já são sentidos. Em primeiro lugar, estamos diante de uma situação em que o antigo modelo de comércio varejista das galerias vem sendo substituído por amalgamações globais de larga escala, como a Hauser & Wirth & Zwirner e a Gagosian. Não se trata de monopólio, no entanto, a tendência à conglomerados no mercado e instituições artísticas (Guggenheim) aponta para a ideia de que a arte está cada vez mais enredada nas tentativas de reassegurar o poder monopolista – berço do capitalismo da propriedade privada – cuja geração de riqueza depende de alegações de singularidade e autenticidade distintivas e irreplicáveis. Essa afirmação nos coloca um problema grave, pois o discurso gerado pela produção de conhecimento acadêmico e intelectual no campo da arte arrisca ser instrumentalizado como commodities do consumo de trabalhos artísticos frente a ascensão da competição e globalização no negócio da arte. Em segundo lugar, a própria criação artística – tradicionalmente vinculada à interiorização, ao tempo lento e à autonomia de pensamento – se vê obrigada a adaptar-se ao ritmo da demanda do mercado, forçando um esvaziamento crítico de sua produção, confinando-a a clichês do vocabulário de experiências pessoais comercialmente conformistas, e resultando num enfraquecimento nas relações formais e de conteúdo. Vik Muniz tornou-se mundialmente famoso por suas releituras de obras icônicas da história da arte feitas com macarrão e chocolate; as expressões da pobreza e abandono pelo Estado das classes baixas urbanas, uma vez retratadas pela dupla Os Gêmeos nas ruas do Cambuci, agora figuram em lenços da nova coleção da Louis Vuitton.
Soma-se a tudo isso a politicagem grotesca que ainda estrutura os mecanismos administrativos da cultura no Brasil. Salvo duas ou três instituições, a nomeação por interesses político-partidários de diretores de instituições peca na avaliação profissional destes indivíduos que ora usam uma instituição pública em benefício próprio, ora armam-na com interesses privados. O Museu da Imagem e do Som – MIS, em São Paulo, por exemplo, exibiu em 2012 os trabalhos de grafiteiros sob o título “Keep Walking Brazil”, patrocinados pela Johnnie Walker. A tela que tivesse o “maior valor artístico”, figuraria na capa do próximo CD de remix de sucessos da Madonna...
Se a produção da arte, como jogo com o inegociável da vida social e desestabilizador de discursos hegemônicos, passa a ser instrumentalizada para a manutenção do poder e status da elite capitalista privada, então estamos diante de um “direcionamento privatizado” das dimensões de fruição e de possibilidade de um real posicionamento crítico frente ao mundo. Reivindicar o caráter público de instituições públicas e exigir políticas fortes que fomentem e preservem a autonomia do pensamento na produção artística é reivindicar que, em se tratando de arte feita no país, que, ao menos, ela não seja grafada com “z” e sim, com “s”.