Estamos no escuro - CSO: Congresso Sobre Outras Obras, Faculdade de Belas Artes, Lisboa
“As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas as filhas da terra não têm onde repousar a cabeça”, diz Natália Ginzburg em seu escrito “O Filho do Homem”. No conto, a poeta discorre sobre a cisão fundamental que ocorre entre as gerações pré guerra das gerações que viveram-na na tenra idade e após. Quem viu a realidade em sua face mais terrível, diz Ginzburg, não tolera mais mentira: “Ainda há alguns que se queixam de que os escritores se servem de uma linguagem amarga e violenta, que contam coisas duras e tristes, que apresentam a realidade mais desolados. Nós não podemos mentir nos livros, nem podemos mentir em nenhuma coisa que fazemos. E talvez este seja o único bem que nos veio da guerra. Não mentir e não tolerar que outros mintam para nós”.
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Entre os primeiros dias de janeiro quando iniciamos o texto que planejamos apresentar e hoje, 03 de abril de 2020, o mundo mudou. A noção de fronteira, sobretudo na Itália de Ginzburg, passou a ser a máscara que separa a minha respiração, da do ar do ambiente; o ar é só meu; se compartilhado, pode matar; passou a ser a epiderme higienizada tal e qual o plástico da cesta higienizada do supermercado, tal e qual a munheca de plástico da minha prótese, que o médico, sentindo sua pulsação, me prescreve receitas que salvarão minha vida (Bellatin Maravilhoso). Um giro de 180º, um imprevisto inevitável e somos atingidos pelo colapso. O que não nos permite mentir mais não são canhões nem barulhos de sirene, mas um vírus silencioso e invisível batizado de COVID – 19 que obriga o mundo a desacelerar; a se enfrentar no campo de batalha mais complexo, mais difícil, o do estar só em silêncio. Do estar no escuro, salvo quando iluminados pela luz azul das telas do computador e celular.
Há duas semanas estamos confinados em nossas casas aqui no Brasil e rebelar-se todos os dias às 20:30 horas de nossas janelas tem sido a única forma de nossos corpos coletivos não serem privados do que resta de vitalidade.
Como Ginzburg, acreditamos que a mentira das fake news, a mentira do neoliberalismo, a mentira do negacionismo ambiental, a mentira da neutralidade do interesse financeiro sórdido para lucrar em qualquer crise, a mentira do que virou a ideia de democracia representativa, vai ser lavada pela eficácia e inteligência de um ser vivo microscópico, que faz dos humanos seu hospedeiro, sem que ele veja. Mas principalmente, o que está em jogo agora, na nossa cisão fundamental entre gerações no contexto do COVID – 19 - que parece mais um filme de ficção científica zumbi sem termos que contextualizá-lo no futuro – é o fim da relativização. A arte não relativiza mais. A arte não problematiza mais, ela não questiona. Ela exige. Respostas, movimentos, vozes, corpos, postura ética. Ela é tradicional, burocrática, formal e experimental – usamos de qualquer artifício para que nos ouçam, que nos enxerguem e percebam, ressoando o timbre das panelas se deformando em som de fúria todos os dias de nossas janelas.
Toda a ilusão de que nós humanos, no nosso furor de espécie dominante que podemos controlar o mundo, se desfez nos últimos dois meses. Descobrimos que há um mundo além de nós, habitado por outros que não conseguimos enxergar e que podem nos exterminar. Estamos ainda sem repousar nossas cabeças. Estamos no escuro.
Ninguém sabe dizer como sairemos dessa pandemia. Além de nossa sobrevivência, o que disputamos neste momento é em que mundo viveremos e que tipo de humano seremos depois de tudo isso.
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O texto que havíamos escrito para esse Congresso falava da escrita nas artes visuais – das experimentações político-formais no corpo linguístico performativo na obra do artista brasileiro Fabio Morais. Experimentações que, podemos assim dizer, despem a imagem de seu excesso informacional até o limite de sua matriz linguística, ou descortinam o que há de corpo pulsante na palavra textual. De uma escrita que abdica da lógica editorial de textos discursivos, ensaísticos ou narrativos, assumindo as próprias materialidades das artes visuais, como objetos, instalações, livros, vídeos, performances, entre outras proposições.
Escolhemos alguns trabalhos apresentados em Excritexpográfica – uma exposição que o artista realizou em fevereiro de 2017 na Galeria Vermelho, em São Paulo, onde mostrava articulações gráfico-espaciais que acresciam à palavra a condição de imagem em marcha, possibilitando novos significados e instigando um olhar analítico à conjuntura política brasileira e mundial.
O primeiro deles, Mecânica (2016) – um texto em vinil recortado impresso diretamente na quase totalidade da parede do piso superior da galeria, construído por 8 frases circulares, sem começo nem fim, expunha questões estruturais das desigualdades sócio-políticas brasileiras. Tais como:
... as mesmas oligarquias midiático-econômicas continuem manipulando a opinião pública e regendo a democracia deformada pela dominação financeira na qual o voto alienado e despolitizado é usado como legitimação democrática para que ...
Além de evocar o quanto estas questões engendram o funcionamento repetitivo-reacionário de um sistema político-financeiro que acomete uma larga fatia da sociedade aos malefícios dos efeitos colaterais de suas engrenagens, atacando-lhe diretamente o fígado, o formato circular da sintaxe espelha-se num desenho gráfico no qual os textos parecem engatar uns nos outros em um movimento mecânico. No círculo central, a nona frase que impulsiona o mecanismo, é o “ordem e progresso” da bandeira brasileira. Deixando-se levar pela escala da vertigem que o texto-vácuo apresenta, encaramos o positivismo colonizado e bêbado que não convence mais como fantasia outrora emancipatória.
Na sequência, fomos para Imagens (2016) – uma pintura-fotografia que ocupou uma outra parede da parte superior da galeria. Imagens era composta por 1.200 títulos de fotografias jornalísticas apropriadas da Internet através de buscas de termos ligados a conflitos sociais
como “terrorismo”, “atentado”, “refugiados”, “protesto”, “manifestação”, “reintegração de posse”
e “repressão”, em diferentes idiomas.
Uma obra que confere de forma mais explícita que o texto não demanda ser lido; o texto se liberta do autoritarismo dos códigos gramaticais e linguísticos que logram exclusivamente leitura interpretativa para tornar-se pura imagem. A única peça na exposição que “respeita” a matriz linguística ocidental, com seu rigor reto-horizontal da esquerda-à-direita-de-cima-para-baixo resulta em um texto-cor. Uma vez decodificado o modo de construção desse texto-cor, a saber, linhas condensadas de terror de toda sorte que acabam por gerar um campo de visão vermelho, passamos a aceitar que a somatória de todas as cores não logra o preto; a somatória de todos os interesses do capital que resulta em conflitos violentos por todos os cantos do planeta logra vermelho sangue.
Por último, Manifestação (2016), um trabalho que ocupou a sala principal da galeria, apresentando um conjunto de faixas usadas em manifestações de rua disposta de maneira casual, apenas encostadas nas paredes da sala. Nelas, uma seleção de apropriações de textos contidos em obras de arte brasileira a partir da década de 60 até o presente. Algumas delas nos dão pistas imediatas dessas apropriações em pinturas, desenhos e esculturas, tais como SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI, de Helio Oiticica, ou ARTE A MÃO ARMADA, de Carmela Gross, enquanto outras vêm apropriadas de livros, cartazes, filmes e performances.
Essas obras-faixas de manifestação ocuparam um espaço que se apresentava como um espaço-instante-urgente: remetiam ao possível pós de uma das milhares de manifestações em 2016 anti-golpe parlamentar concluído naquele ano contra a presidenta eleita pelo voto popular Dilma Rousseff, ao mesmo tempo que remetiam à concentração com cheiro de adrenalina “aquecendo” para manifestações contra o golpe militar de 1964. Esses corpos textográficos expunham a intensidade pulsante de um espaço-instante-urgente de cinquenta e dois anos de duração, que ainda carece de conclusão histórico-social, mas que resiste com força a uma repetição histórica-internacional dos efeitos nefastos advindos do amadurecimento cancerígeno das forças do capital neoliberal. São textos que comprimem meio século de história e que causam no corpo do visitante a sensação de que esse ciclo histórico não se encerrou nos nossos tempos, nem nas fronteiras do Brasil e definitivamente para além da língua portuguesa.
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Nestas últimas semanas uma torrente de textos tem chegado em nossas caixas de e-mails, WhatsApp, Facebook, entre outras. Otimistas e pessimistas convergem em suas análises e trazem à tona as questões climáticas e, não raro, citam o apartheid que isso provocará, onde ricos pagarão para escapar do calor extremo, da fome e dos conflitos enquanto o resto do mundo é deixado a própria sorte. O COVID – 19 surge para escancarar esses muros que há tempo têm sido erguidos. Ângela Merckel foi aplaudida por todo o espectro partidário de seu país ao fechar as fronteiras para barrar o vírus – mesmo já dentro do território alemão –, mas foi fortemente criticada por partidos de direita e extrema direita por não tê-lo feito para barrar imigrantes. O vírus COVID – 19 viaja em corpos de membros de altos escalões de governos, em corpos de altos executivos ou Jet setters fugindo do inverno sem antes passar no casamento da celebridade. Os refugiados nem são mais corpos, são já virulentos que precisam ser mantidos em eterna quarentena em campos supraterritoriais; mas as fronteiras aéreas, rodoviárias e marítimas barram um “corpo” sem massa, invisível, o do vírus. Certos corpos são irrefreáveis na arquitetura da globalização; uma arquitetura de um presente sem vento - escadas rolantes, janelas fechadas, ar condicionado e elevadores: ambiente propício para rápida disseminação de um vírus que pode ser fatal.
De um lado vemos uma Europa desengonçada e amadora no uso de sua autoridade na contenção da circulação de um “inimigo” que já está “dentro” e de outro vemos a força coercitiva da autoridade biopolítica como justificativa para gestos inéditos de vigilância e controle na Ásia. Após a pandemia, o capitalismo continuará ainda com mais pujança? Escancaram-se os limites do capitalismo, mostrando-nos que ele mesmo tem a maior taxa de letalidade do que qualquer doença já catalogada?
Hoje já vivemos tempos em que a autoexploração é mais eficiente do que a exploração do outro, porque caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. Liberdade apenas se for para se matar de trabalhar.
Cabe a nós imaginar gestos que barrem essa chacina. Se desde janeiro nos tornamos capazes de nos afastar uns dos outros para sermos mais solidários, de permanecer confinados em casa para não sobrecarregarmos os hospitais, em nome da coletividade, podemos perfeitamente imaginar o poder transformador que esses novos gestos podem ter e decidir por aquilo a que somos apegados e por aquilo de que estamos dispostos a nos libertar.