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9:59 - 0:00 - Cinema Contemporâneo Japonês, Caixa Cultural

2010

Esse texto começará com o amor, já que é sobretudo do amor que tratam os quatro longas metragens contidos nessa mostra. Amar é abrir-se ao outro, outrar-se. Em seu primeiro filme 2/DUO (1997), Nobuhiro Suwa abriu mão de um roteiro prévia e cuidadosamente elaborado e abriu-se, a si mesmo e ao filme, para a interferência direta dos atores. Segundo o diretor, a intenção de trabalhar sem um roteiro surgiu de um impulso que se deu casualmente, sem saber precisar sua origem. Como ele mesmo colocou, “se escrevesse meus filmes com minhas próprias palavras, elas pertenceriam a meu mundo interior, a algo que já conheço. Seria por em cena minha própria experiência, e o mundo que se transmitiria daí seria um mundo previamente administrado. Mas do meu ponto de vista, fazer um filme consiste em pegar uma câmera e mostrar um mundo através – e não a partir – dela; um mundo que eu mesmo desconheço, mas que pode ser descoberto ao longo do percurso da realização do filme”[1].  O amor é também um impulso que não se sabe de onde vem, lançado ao acaso e à improvisação de seus autores no percurso de sua própria realização.

 

O cinema de Nobuhiro Suwa nasce das mesmas condições de relação com o outro, sobre as quais seus filmes ficcionalizam. A radicalidade de seu experimentalismo minimalista ao tratar de crises amorosas aponta para uma crise da narrativa. Em 2/DUO, a crise é de conceito. É a palavra “matrimônio” que causa estranhamento e que leva os personagens a optarem por um caminho de tentativa de entendimentos erráticos, irritantes e estridentes. Em dado momento, ouvimos a voz do diretor off-camera questionando os atores sobre seus papéis, o que encaminha o filme, como alguns críticos sugerem, para uma zona nebulosa entre ficção e documentário. Para mim, no entanto, trata-se de um outro tipo de zona: o da ficção e interioridade. Suwa fala da “matéria fílmica”, da consciência de que as imagens que nos sequestram e impactam partem das partículas magnéticas da própria película; de que o conteúdo não é uma representação de uma realidade qualquer com a qual o espectador se identifica. É aquilo mesmo. É aquela ilusão tratada ali que afeta por igual o diretor, atores, equipe de filmagem, espectadores, os personagens, e nos torna conscientes de nossa posição subjetiva. Ou seja, o “real” não é externo ao tratamento daquela  ficção, mas é tratado como carga de ilusão em seu interior.

 

Portanto, não se trata de um tempo narrativo como o conhecemos (que seja linear ou não-linear, fragmentado, elíptico, em reverso); é um tempo mental,  uma espécie de tableau vivant em motion pictures. Uma atenção retinal e auditiva é substituída por uma sintonia empática que toma o corpo inteiro do espectador, quando se percebe os espaços de devires inconclusos se apresentando a cada silêncio, a cada cacofonia. São filmes exigentes em relação à cumplicidade do espectador, com sequências tão dilatadas, tão silenciosas, que o clássico plano/contra-plano parece se esvaecer em planos singulares. O cinema de Suwa trabalha contra o plano – contra sua estabilidade e integridade – como em M/Other (1999) –, mas também a partir dele, a partir da solidez e frontalidade do plano fixo em Un Couple Parfait (2005).

 

M/Other oferece um ritmo mais dinâmico que 2/Duo. No segundo longa realizado por Suwa, a trilha original é inserida como uma poderosa ferramenta de construção de sentido. O rasgo sonoro fatalista dos primeiros planos são medidores de um tempo que nos torna dolorosamente conscientes da crescente tensão entre Aki e Tetsuro, uma vez que o tema “família” os força a redesenhar a relação. Conforme a situação do casal se desenvolve, o som do violino começa a se afinar e a dar forma ao vislumbre de uma melodia. O som é o diapasão que determina o ritmo do filme e que acena para a variabilidade do fracasso entre o casal, bem como à aleatoriedade da emergência de resolução para eles e para o próprio filme. O andamento da narrativa sonora é alento para a  temporalidade dilatada do filme, o que nos remete ao estado de um sempre-presente à espreita de devires vertiginosamente inconclusos. 

 

Em Un Couple Parfait é o silêncio e a câmera fixa em quadros de longa duração que revelam a distância que se instaurou entre Marie e Nicolas, a ponto de torna-los duas singularidades que se molestam. A forte presença de espelhos e superfícies transparentes refletem dois “eus” – ex-“nós” – que se confundem com suas próprias projeções, ao mesmo tempo que economiza a edição dos planos. Cria-se um espaço de frestas, e não de cortes. Durante vários minutos, vemos a porta que divide o quarto de hotel onde o casal, a ponto de se separar depois de 15 anos de uma relação modelo, se instala em Paris para atender o casamento de amigos. Estamos ali, no interior daquele quarto, testemunhando um diálogo que talvez não devêssemos ter escutado; ouvindo aquela voz que vaza, talvez inapropriadamente em função de nossa presença,  pelas frestas da porta e pela maçaneta, em busca de qualquer resposta que torne aquele conflito – a relação, o filme – um pouco mais acessível às partes (Nicolas, Marie, espectador, filme, diretor).

 

Os desenfoques emocionais dos casais mostram que uma vez esgotada a possibilidade de se alojar no outro, de torcer a identidade, a linguagem como tentativa de reescrever o pacto se torna contingente. À Suwa interessa olhar as relações amorosas em crise,  singularidades que só percebem a presença da relação quando ela se torna difícil, quando a comunicação entre as partes passa a ser pautada por diálogos surdos, quando elas se defendem da vulnerabilidade ao outro e se vêem incapazes de continuar o exercício de outrar-se. Há sempre uma dualidade que se faz patente: algo que é comum a todos, como o amor, mas também algo que não compreendemos bem, que não conseguimos explicar com clareza.

 

É a incerteza que recai sobre a imagem como representação de uma realidade qualquer que pauta H Story (2001). Suwa organiza uma equipe de filmagem em sua cidade natal, Hiroshima, para embarcar na delicada tarefa de remontar quadro-a-quadro o Hiroshima, Mon Amour (1959), de Alan Resnais. Na tentativa de rever o passado, ainda envolto em silêncio na sociedade japonesa, pela remontagem sobre uma representação sobre o passado, o filme se joga inevitavelmente para o presente, remetendo-se sempre a seu interior marcado pela frustração da impossibilidade do remake. “Eu não tinha nada a dizer, a princípio. Os Japoneses não conseguem olhar nem falar a respeito de Hiroshima. É ao mesmo tempo muito íntimo e muito imenso”.

 

Pouco se fala do trauma, pouco se mostra do clássico da nouvelle vague. Fica estabelecido que as imagens documentais sobre o holocausto nuclear contidas no filme original serão descartadas na remontagem (segundo o próprio Resnais, cada vez que ele encaixava as fotografias documentais sobre a explosão, o filme perdia sua carga de horror). Foi a relação amorosa entre os personagens inominados de Emanuelle Riva e Eiji Okada, cinquenta anos atrás,  o foco escolhido para a negociação com a perda de Hiroshima. No entanto, a atriz francesa Beatrice Dalle – escalada para interpretar o personagem de Riva – não consegue lidar com a obsessão do diretor em evocar e recriar as memórias que permeiam a cidade e a psique de sua geração. Ver-se tão diretamente envolvida no desejo do diretor de re(a)ver uma perda sua é mais íntimo do que ela consegue aguentar, e mais imenso do que ela consegue sustentar. Da impossibilidade de resolver o trauma através da sua representação, nasce um filme-experiência, onde Suwa é o diretor de H Story em H Story; Dalle é Dalle, que parece expressar silenciosamente o diálogo-chave do original, “Você não viu nada em Hiroshima”, a partir da crise de comunicação que se instaurou entre atriz e diretor.

 

Os filmes de Nobuhiro Suwa tratam de pessoas que carecem da liberdade de romper ou re-inventar suas relações. O problema de relacionamento das personagens – e do relacionamento profissional do próprio diretor com sua atriz, tornados personagens – está intimamente ligado à sistematização louca do mundo atual, sendo cerceado por regras de comportamento, regras de linguagem. Um mundo de especificações que demanda soluções rápidas, roteirizadas com começo-meio-fim, palatáveis e digeridas, não comporta a interrupção da comunicação, nem a incorporação do erro no projeto cinematográfico, nem a atribuição de novos valores ao cinema. Mas para Nobuhiro Suwa, o abrir-se ao inconcluso, à suspensão da linguagem, à espontaneidade de lançar os significados de seus filmes ao interior de cada espectador, de outrar-se, é onde tudo começa, não é o fim.

 


 

[1] Entrevista concedida a Alfonso Crespo em Paris, em 07 de março de 2008.

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